21 de março de 2020

Schoenberg: Violin Concerto; Verklärte Nacht (Harmonia Mundi, 2020)

Certo. Os tempos estão mais para Manuel Bandeira: “Noite morta// Junto ao poste de iluminação/ Os sapos engolem mosquitos// Ninguém passa na estrada/ Nem um bêbado.” Se prestarmos bem atenção, claro, o caso muda de figura, pois até numa rua deserta espreitam as “Sombras [dos] que passaram/ [Dos] que ainda vivem e [dos] que morreram.” Duas delas, não inteiramente sós, foram protagonistas de “A Noite Transfigurada” (1899): numa noite de intenso luar, passeando por um bosque nu, uma mulher, grávida, confessa ao companheiro carregar o fruto de outro no seu ventre; perdoando-a facilmente, ele pede-lhe que veja como o universo em seu redor cintila, como tudo refulge, como o calor profundo que deles irradia vai transfigurar essa criança, de filho ilegítimo de um estranho a filho legítimo dos dois. Assim rezava o poema de Richard Dehmel, à volta do qual Schoenberg teceu uma finíssima teia em que se diria querer apanhar um outro casal: Wagner e Brahms, que desejava completamente purgar das maleitas do fin de siècle. Conforme viria a escrever, anos depois, a tonalidade era uma vítima de “incesto” – era “sentimental”, “cosmopolita”, “consanguínea”, “efeminada”, “hermafrodita”, cheia de acordes “vira-casacas” que se adaptavam a qualquer situação. E como é difícil pegar neste peça sem pensar neste triste vocabulário, sem proceder à autópsia de um organismo consumido pelo vírus da degeneração, que é, mais ou menos, como Schoenberg via o que imediatamente o precedeu. Nas infalíveis mãos de Faust, na sua versão para sexteto (em cuja interpretação, por sinal, figura, ao violoncelo, Jean-Guihen Queyras, que, em 2014, com o Ensemble Resonanz, participou no último registo digno de nota da peça), e tal o seu à-vontade neste material, o drama do casal é não só inteiramente compreensível como eminentemente credível: o que Schoenberg apresenta como problema (afinal, o bastardo da tonalidade era ele) é aqui visto como uma solução. O mesmo se aplica ao “Concerto para Violino” (1936), com a alemã a deixar-se arrebatar pelas excêntricas órbitas que o compositor desenhou em torno do eixo fixo da razão – em noites mortas, não há melhores.

Sem comentários:

Enviar um comentário