Em “Mostro con l’ali nere”, toda ela contrária à
ordem regular da natureza, com serpentes em vez de cabelos, gelada ao toque e
escura como o breu, uma agoirenta criatura levanta voo do inferno, pronta a
ofuscar o esplendor do céu. Calma, que é do vírus do ciúme que esta cantata de
Luigi Rossi trata. No contexto da sua oportuníssima produção, aliás, apenas um
dos muitos mal-estares suscetíveis de cura pela música. Observe-se com atenção
“Al soave spirar”, por exemplo: numa embarcação, de regresso a casa, e após uma
longa travessia, o protagonista vê-se perante um saque, cercado por amotinados marinheiros
que a avidez do lucro cegou; desesperado, enraivecido, suplicante, lamentando
tamanho infortúnio, pede que o acudam e, depois, que o vinguem, até que, a
custo, recupera a dignidade, faz a apologia da perseverança e, cantando, se lança
ao mar e para a morte; nesse derradeiro momento, movido pela compaixão, um
golfinho condu-lo no seu dorso, são e salvo, até à costa. Como é óbvio, Rossi
apresentava uma variação sobre a lenda grega de Aríon em ligação direta à moral
da história: se sons tão harmoniosos conseguem fazer isto, não há realmente
limite às desgraças que uma bela melodia pode mitigar. Esqueceu-se, só, de dizer
que Aríon empunhava uma lira, o que, neste enquadramento, não é estritamente
necessário: aqui, de forma a encadear estas canções (21 delas em primeira
gravação), Pluhar [na foto] procede à invocação de Orfeu e de David.
Basta pensar num, com
os argonautas, a sobrepor a sua voz à das sereias (“Navegar é preciso/ Viver
não é preciso”, quase se ouve), e noutro, dedilhando uma harpa, a aliviar o sofrimento
de Saul (no caso, é o ‘Hallelujah’, de Cohen, que logo vem à memória), para se
perceber que – placebo, profilático ou paliativo – o disco dá resposta a uma
crise. E, girando, como tantos, na órbita do Cardeal Jules Mazarin, depois do
Conclave de 1644, a verdade é que a principal preocupação de Rossi seria
afastar-se dos Estados Papais e procurar abrigo na corte francesa – hoje, é
inconcebível que as suas reflexões sobre amor sagrado e profano surgissem
condicionadas pela rivalidade franco-habsburguiana. Mas, não fosse a sua
capacidade em transpor esses contraditórios impulsos do campo dos afetos para o
da política – muita da sua obra obedece à lógica da guerra dos sexos – e
sabe-se lá se teria vindo a ser tão apreciado por Luís XIV! Seja como for, o
ponto não é esse. O que interessa é o que se escuta em “Se dolente e flebil
cetra”: que se lhe “parte o coração”, e não se lhe “calam os ais”, se o cantar
da sua cítara não inspirar a piedade de que tanto precisa. Ora, isto é fado.
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