28 de março de 2020

À janela [Agenda virtual]

Em entrevista, há uns bons 25 anos, inquirido acerca dos seus hábitos de audição caseiros, Cecil Taylor dizia assim: “Escuto muitas coisas diferentes. Hoje, por exemplo, ouvi música clássica chinesa, cantos islâmicos e a Orquestra de Duke Ellington, por volta de 1945 – um dos temas era absolutamente incrível. Ouvi a Victoria de Los Ángeles no ‘Dido e Eneias’, de Purcell, e, depois, o Gary Graffman a tocar o primeiro andamento do ‘Concerto para Piano Nº 1’, de Brahms – é qualquer coisa, deixa-me que te diga. A seguir, fui ouvir a Leontyne Price a cantar a cena final de ‘Salomé’, de Richard Strauss – bem… foi, assim… wheeew. E, claro, ouço diariamente qualquer coisa de Ligeti – hoje foi ‘Ramificações’, outra peça coral qualquer e ‘Atmosferas’. Também ouço todos os dias Marvin Gaye, como é óbvio. Ainda pus no gira-discos Sarah Vaughan e, por fim, Xenakis, uma peça orquestral – esse sacana é demais!” Tudo isto, pasme-se, sem que tivesse sido decretado o estado de emergência, sem que tivesse a sua subsistência, para não dizer, já, a sua própria sobrevivência, ameaçada e, claro, sem acesso à internet, o que não é menos espantoso. Imagine-se o que faria com tudo o que nos é agora subitamente colocado à disposição: talvez começasse pela vizinhança, dando um salto à página de Facebook de Fred Hersch [na foto], por exemplo, que à nossa hora do chá tem dado pequenos recitais aos seus seguidores; aí, talvez tropeçasse em #fightcoronaseries, em redor da qual se têm vindo a agremiar músicos de todo o mundo, aproveitando para amaldiçoar pela primeira vez o seu fornecedor de banda larga; nesse domínio é provável que recebesse uma chamada de atenção para a “Spring 2020 Jazz Series”, da Firehouse 12, em transmissão exclusiva no canal de YouTube da sala (em abril, estão agendadas atuações de Allison Miller e Carmen Staaf, Daniel Levin e Mat Maneri, de Lioness e do sexteto de Allen Lowe); mas, conhecendo os seus gostos, seria muitíssimo provável que, hoje, despedindo-se de Hersch, se ligasse ao site da Ópera de Viena para apanhar a retransmissão gratuita de “O Crepúsculo dos Deuses”, de Wagner, e que, amanhã, à meia-noite, acedesse ao da 92|Y para ver e ouvir Anthony de Mare a tocar Stephen Sondheim ao vivo; ao longo da semana, assistiria aos Nightly Met Opera Streams e perder-se-ia nos arquivos escancarados do Wigmore Hall, da Ópera de Berlim e da Filarmónica de Berlim ou na plataforma Marquee TV; além de que, no Twitter ou Instagram, instrumentistas como Yo-Yo Ma, Gautier Capuçon, Igor Levit ou Alisa Weilerstein descobriram o televangelista que tinham em si – raios partam, que isto está mais para o Sol e Dó do que para a solidão! Apesar das indicações em contrário, é o que tenho sentido nos últimos dias, sentado ao computador, a abrir janelas atrás de janelas até me vir à memória aquela canção do Roberto – ‘À Janela’, precisamente – em que ele cantava “Quantas vezes eu pensei sair de casa/ Mas eu desisti/ Pois, eu sei, lá fora eu não teria/ O que eu tenho agora aqui” e me tentar convencer de que o que ele diz é verdade.

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