4 de abril de 2020

Kate Lindsey, Arcangelo "Arianna" (Alpha, 2020)

Observe-se com atenção a capa deste “Arianna”, que logo virá à memória a senhora X – “enterrada da cintura para baixo numa rocha”, “presa e desamparada” numa “praia cheia de pedras” – de que Jung falava em “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo”. Agora, tal como então, aliás, por intermédio de Handel e Haydn (nas cantatas “Ah, Cruel! No meu Pranto” e “Ariana em Naxos”), favorece-se a representação de um cativeiro, não tanto de um ato de libertação. Dir-se-ia que Kate Lindsey, a ter algum livro na mão, privilegiaria antes “Heróides”, de Ovídio, em que a protagonista, desesperada, quanto mais corre, mais se enterra na areia: “Entretanto, aos meus gritos de ‘Teseu’, pela praia, as rochas côncavas devolviam-me o teu nome; e quantas vezes, eu, a ti chamei, tantas vezes o lugar chamava!” Para Lindsey, o mito de Ariana é “uma exploração psicológica da necessidade de amar, da coragem que requer, dos riscos que acarreta”, avança, em notas de apresentação. “Amar é uma das nossas maiores e mais perigosas aventuras.” Que o diga Ariana, claro, que, após se ter apaixonado à primeira vista por Teseu, e de o ter ajudado a derrotar o Minotauro, em Creta, ficou, na ilha de Naxos, pelo seu amado traída e à sua sorte deixada, a ver navios, como Junot. Aqui, só em “Ébria de Amor, Fugia”, de Alessandro Scarlatti, lhe é concedida a redenção – na figura de Baco, que, achando-a consumida pela dor, compadecido, lhe dá a mão (“Baco e Ariana”, de Ticiano, descreve esse encontro). Mas se Scarlatti e Handel compunham à mesma hora, no mesmo lugar, para a mesmíssima plateia (em Roma, em 1707), já Haydn, em 1790, isolado na herdade dos Esterházy, se sentia longe de tudo e de todos, sobretudo de Viena e de Maria Anna von Genzinger, pela qual nutria um amor platónico – e quando a sua Ariana se lamenta (“Miserável e só/ Não tenho quem me console/ Foge de mim quem tanto amei/ Cruel e infielmente”) é a voz dele que se escuta. Nesse particular, Lindsey atinge uma crueza tão irredutível quão irredimível: mais que o seu impedimento absoluto, a de quem canta a maldição que pode advir da intimidade. Nos dias que correm, somos todos vulneráveis à ideia.

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