Bethânia continua bela como uma árvore feia, com o cabelo cada vez mais feito só de raízes e galhos – pêlo de prata sobre olhos prazenteiros – e uma tez ora esculpida a cera ora desenhada a carvão. Tudo numa máscara de luz e sombra, concentrando a memória da terra e do mar. Ela, que se fez em palco, a quem chamaram Rainha, outrora vestida de dourados e tingida de vermelhos, vai agora em disco despontando inevitável mas imperturbavelmente grave e branda, como um lento astro atrás de marés. De forma paradoxal, parece-se também cada vez mais com o Brasil: quanto mais por si o tempo passa mais preparada está para começar de novo.
Não que pela edição simultânea de dois álbuns opere algum tipo de corte no seu passado recente. Muito menos, soçobrando com o peso de mais uma efeméride, se esgota numa meditação sobre a memória. Adivinha-se antes aqui uma lógica convergente que, por acumulação, permite compreender os seus interesses e motivações ao longo da última década (desde “A Força Que Nunca Seca”, de 1999), na qual, no entanto, não inscreve a nostalgia de forma literal: isto, porque traz maioritariamente canções inéditas que falam tanto de si quanto da ideia que de si têm os seus autores. E, como em “Brasileirinho” (2003), “Pirata” (2006) ou “Mar de Sophia” (2006), reitera o fascínio por um mundo rural imerso em símbolos, mitos e fantasia, a devoção aos Orixás e ao Candomblé de Caboclo, a capacidade de apurar impulsos conceptuais de fundação poética, a progressiva atenção aos arranjos de Jaime Além (destilando boleros de ‘piano bar’, dedilhando impressionistas baiões, dissolvendo solenidade de câmara em atmosfera caipira) ou a metáfora que faz do mar e rios afluentes da paixão.
“Tua”, com inspirados originais de Dory Caymmi/Paulo César Pinheiro, César Mendes/Arnaldo Antunes ou Chico César/Paulinho Moska (este, um dueto com Lenine), vem dedicado ao amor e à saudade e, no seu melhor, é um sucedâneo de “Âmbar” (1996) com menos pérolas no colar. “Encanteria” consagra-se à fé e ao sincretismo baiano, tem uma ‘Saudade Dela’ (com Caetano e Gil) capaz de lembrar ‘Alguém Me Avisou’ (que os três cantaram em “Talismã”, de 1980) e revela-se indispensável nos sambas de Roque Ferreira e nos temas com a Orquestra Portátil de Música, de Maurício Carrilho e Luciana Rabello. Não marcam, nem poderiam, este tempo como há muito fizeram “Drama” (1972), “Álibi” (1978) ou “Alteza” (1981), mas chegam para provar que Bethânia continua mais bela e importante que os seus discos.
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