25 de abril de 2014

Lopes-Graça: Integral da Obra Para Violino e Piano e Violino Solo (Naxos, 2014)



Bruno Monteiro (vl), João Paulo Santos (p)
 

Trata-se muitas vezes Fernando Lopes-Graça (1906-1994) como um agente envolvido em obscuros processos históricos. Mas, simplesmente, como a tantos outros, aconteceu-lhe o Estado Novo, que lhe deu ordem de prisão e arresto, lhe censurou escritos e ditos, criminalizou a profissão, mobilizou o espírito, ilegalizou a vida e, em certa medida, perigou a posteridade. Por isso há quem o veja à luz do maniqueísmo. Bem o sabe Bruno Monteiro, que, em declarações ao Expresso, sintetiza assim a questão: “A dualidade existe, sem dúvida. Mas é o que torna [esta] música tão interessante.Lopes-Graça, com as suas convicções políticas, sociais, musicais, estéticas, é, no fim de tudo, humano. Essa foi a nossa principal preocupação: trazer ao de cima o [seu] lado humano.” Coligindo esta importante integral que perpassa décadas de criação – partindo de um par de expressivas sonatinas, opúsculos 10 e 11, que remontam aos anos trinta, e terminando no algo mórbido “Adágio Doloroso e Fantasia”, Op. 242, de finais de oitenta –, Monteiro e João Paulo Santos compreenderam que o maior dos comprometimentos do compositor logo se escorava na definição de responsabilidade intelectual. Por exemplo, em 1948 (ano da adesão oficial de Lopes-Graça ao PCP), em Portugal, ser comunista seria, decerto, uma oportunidade de partilhar de uma dignidade comum, mas Lopes-Graça jamais ignorou que, na música, a ideologia é como aquelas presenças nas nossas vidas cuja companhia nas doses erradas envenena e nas inversas inebria. Especificamente na sua dimensão camerística, aqui, ainda que se identifique impotência na forma, nunca se vislumbra vulgaridade no conteúdo. Com outra feição – porventura mais vaidosa ou rancorosa ou sublinhando em exagero miasmas e assimetrias – o que está neste CD escorregaria em absoluto para um cárcere do qual poderia não tornar. Diria o violinista que o próprio material proíbe leituras lineares: “Todas as obras são relativamente curtas, mas todas [são] completamente contrastantes. Até dentro de uma mesma peça, todos os andamentos são diferentes entre si. Não há continuidade. Somos obrigados a estar permanentemente a mudar de emoções e a ficar alerta, pois o carácter, a velocidade, a estrutura interior se alteram constantemente.” Depoimento suficiente para se entender que este património não se deixa cativar por qualquer sistema. Aliás, em tempo algum se fixará em definitivo o que pressupõe uma identidade cultural de tal modo volátil, um virtuosismo que não depende só dos caprichos da invenção, sons provocantemente dependurados das esquinas da tonalidade. Monteiro e João Paulo têm noção de que pode seguir-se a democracia à ditadura, a liberdade à repressão, e haver sempre quem julgue que se trocou um inferno por outro. Um disco destes afasta do pensamento tão sombria ideia.

A entrevista completa:


Muitas das obras incluídas neste vosso CD sofreram correções desde a data de composição. Tocaram sempre as versões revistas?
Sim. De facto, ao que sabemos, quatro das obras incluídas no CD sofreram revisões. Três delas pelo próprio Lopes-Graça e uma pelo João Paulo Santos. As revistas pelo compositor foram as duas sonatinas e “Prelúdio, Capricho e Galope”. Claro está que tocamos a versão revista. O caso mais curioso foi o de “Trois Pièces”: depois do Museu da Música Portuguesa me enviar tudo o que havia para esta formação e também para violino solo, reparei que estavam incompletas (tanto a parte de violino como a parte de piano). Por um mero acaso, o João Paulo conseguiu a parte de violino completa que, se não me falha a memória, estava na posse da Lídia de Carvalho (nem o MMP a tinha) e, por aí, digamos que ‘completou’ o resto, fazendo uma revisão aprofundada. Tocámos no início de abril toda a integral em Cascais e o Museu pediu ao João que lhe enviasse esta obra, exatamente como a tocámos, para ser incluída no espólio.

Noto que a edição inclui as “Quatro Miniaturas”, op. 218, na lista de estreias mundiais, mas dou com o mesmíssimo opúsculo num CD editado em 2010 pela Numérica (“Violino em Portugal”, de Luís Pacheco Cunha).
Sim, houve um lapso! O Luís gravou as “Quatro Miniaturas” há uns tempos. No entanto, não sei se a mesma versão.

Já que falo noutras gravações: revisito a dos irmãos Vasco e Grazi Barbosa (num LP da Guilda da Música, de 1972, subsequentemente reeditado em CD pela Strauss e pela CNM, que inclui as Sonatinas, o “Pequeno Tríptico” e “Prelúdio, Capricho e Galope”), e, na realidade, a pergunta que se impõe é: para vocês, foi ou não importante obterem referências interpretativas quando se decidiram por abordar este repertório?
O João Paulo nunca ouviu essa gravação, penso eu. Eu, por outro lado, cresci com ela. Aliás, até a nossa surgir, que inclui as mesmas obras e outras que não foram, então, gravadas, a do Vasco era a única que existia. Gosto muito dela. Por acaso, nos encontros que tive com o Sr. Barbosa falámos sobre muitas coisas, mas não acerca das suas gravações. Deram-me uma ideia da escrita para violino de Lopes-Graça, [que] achei muito difícil, virtuosa. Mas quando as comecei a trabalhar, não ouvi o CD propositadamente. Quis conceber a minha própria visão das obras. E quando eu e o João começámos a ensaiar, passámos muito tempo a tentar encontrar o balanço certo entre a estrutura e a emoção de cada peça, o enfâse do ritmo (que é um dos pilares fundamentais na música de Lopes-Graça) e a mensagem musical que pensámos que ele gostaria que fosse transmitida. Claro que tentámos também pôr algo de nós na interpretação.

O que, dada a questão das estreias, e se é que se pode colocar as coisas nestes termos, levanta a dúvida: na sua opinião, o que se perde e o que se ganha sempre que não se possuem essas referências?
O trabalho é muito maior. É preciso começar do nada. Por exemplo, já tocámos muitas vezes a “Tzigane”, de Ravel, em público. É uma obra muito difícil em termos de leitura da partitura. Mas como há tantas gravações dela, o ouvido já está influenciado. [Perante a ausência de referências] podemos moldar a obra à nossa maneira sem estarmos preocupados com comparações. É por isso que, para mim, uma das grandes razões para os intérpretes do passado soarem tão diferentes uns dos outros, ao contrário de hoje, é por não existirem na altura tantas gravações. Ou seja, todos eles se baseavam apenas e só na partitura e criavam a sua interpretação com base nesta e no seu porte artístico. E todos eles estavam corretos. O público não ia ouvir o “Concerto para Violino” de Beethoven; ia ouvir a interpretação do Beethoven pelo Heifetz, Stern, Milstein, Kreisler, etc. Hoje em dia parece-me que nem é uma coisa nem outra.

Por outro lado (visto serem tão escassos os materiais de consulta), imagino que tiveram de esquadrinhar o espólio de Lopes-Graça de forma a obter o maior número possível de informações sobre cada peça, além de poderem aferir, naturalmente, da viabilidade de gravar uma integral tendo a certeza que não ficou nada perdido no fundo de uma gaveta, não?
Felizmente não ficou nada perdido. A Teresa Cascudo, que é uma das musicólogas que mais se tem dedicado à obra de Lopes-Graça mantém um catálogo onde estão exaustivamente expostas todas as obras do compositor. Por isso foi fácil. O Museu da Música Portuguesa tinha tudo.

Esta vossa gravação trouxe-me muitas surpresas. Curiosamente, uma delas foi tomar consciência do quão irredutivelmente modernas e perfeitamente acabadas, são, de facto, aquelas duas charmosas sonatinas, que já conhecia. E, além do pavor à vulgaridade, o que se sente é um irreprimível desejo em Lopes-Graça de produzir algo original à escala europeia! Como foi projetar esse idealismo praticamente juvenil na vossa interpretação?
Concordo plenamente! O que eu acho é que Lopes-Graça, mesmo nas suas obras de juventude, tem já uma linguagem musical muito própria e definida. Não soa a algo de que dizemos: ‘pois, faz-me lembrar este ou aquele compositor’. Há sem dúvida, uma diferença bem marcada entre a 1ª e a 2ª sonatinas. A 2ª é muito mais rebuscada em termos harmónicos e na estrutura da própria obra. Abre com um andamento inteiramente para violino solo e o último é devastador em termos técnicos. O que tentámos fazer foi, muito simplesmente, quase ignorar o facto de serem obras de juventude e interpretá-las com a mesma profundidade que, por  exemplo, o “Adágio Doloroso e Fantasia”, que foi a sua última obra para violino e piano.

Como é interpretar obras de períodos históricos tão distintos no âmbito de um só CD?
Como dizia na resposta anterior, não olhámos a diferentes períodos, mas sim ao todo da integral e à linguagem de Lopes-Graça. Embora de diferentes épocas, todas elas têm certas características em comum. Em algumas delas, ainda que não completamente óbvias, já com um prenúncio anunciado.

Por outro lado, outras destas peças – penso em “Trois Pièces” ou em “Quatro Miniaturas” – reforçam uma ideia que costumo associar a Lopes-Graça: a de que se estava sempre a tentar provar. E normalmente quem age assim corre o risco de não ser inteiramente convincente. Como é que vocês lidam com a responsabilidade de apresentar uma integral (e logo de modo tão panorâmico, dos anos 30 aos 80) em que, é certo e sabido, há a hipótese de vir ao de cima tudo o que de melhor e menos bom houve na expressão artística de um compositor?
O mais importante para nós, independentemente de obras que possam ser vistas como menos conseguidas, foi extrair o máximo de ‘sumo’ de cada uma. Mesmo numa obra como “Quatro Miniaturas”, que é muita curta e óbvia, foi tentar fazer cada peça com o carácter certo, as articulações, os exageros de dinâmicas. Aliás, penso que, por vezes, é mais difícil tocar uma obra curta do que uma obra grande: quando tocamos, por exemplo, a “Sonata para Violino e Piano” de César Franck (que demora 30 minutos), como é uma obra cíclica, a pessoa começa e vai embalada, pois tudo gira à volta do mesmo. Para mim, o que foi desafiante neste projeto é que todas as obras são relativamente curtas, mas todas elas completamente contrastantes. Mesmo até dentro de uma só peça, todos os andamentos são diferentes entre si. Ou seja, não há continuidade. Somos obrigados a estar sempre a mudar de emoções e também sempre alerta, pois o carácter, a velocidade, a estrutura interior muda constantemente.

Já agora, qual a importância de fazer a integral?
Para mim foi um desafio pessoal, artístico e também cultural. Pessoal, pois nunca tinha tocado Lopes-Graça. Conhecia algumas das obras para violino, obras para canto e piano e o “Quarteto de Arcos nº2” e o “Canto de Amor e de Morte” que foram gravados pelo Quarteto de Cordas do Porto, do qual o primeiro violino (Carlos Fontes) foi meu professor em Portugal. Artística, pois há intérpretes que tocam sempre o mesmo tipo de música: ou são ‘especializados’ em Mozart ou em música contemporânea ou só tocam românticos, etc. O meu repertório é muito vasto e tento variar o mais possível. Tanto toco Bach, como Szymanowski, como Beethoven ou Lopes-Graça. Claro que há ‘máscaras’ que nos assentam melhor de que outras. Por fim, cultural, pois havia uma falha de não haver a gravação integral da sua obra para esta formação. Felizmente a Naxos deu-me carta-branca para o fazer.

O que lhe parece que aprenderam sobre Lopes-Graça neste projeto a que se propuseram? E além das obras propriamente ditas, é importante estudar o contexto em que elas surgiram?
Penso que Lopes-Graça foi um homem do seu tempo, que viveu intensamente as suas convicções e que teve momentos de alegria e tristeza. Sinto isso em toda a sua obra. Se ouvirmos, por exemplo, os andamentos lentos, a sensação que me dá é a de que era um homem com muita emoção interior, com calor humano. Já no “Galope” vemos um homem eufórico, vibrante.

O que também se vai notando ao longo do CD é aquilo que sempre me pareceu uma certa deriva... Alguma incapacidade de Lopes-Graça em ultrapassar a encruzilhada de ideologias com que se deparava, ainda que esta música nunca seja resignada a essa condição, por mais que reflita uma consciência em crise (aqui, penso mais na “Fuga” para violino solo e nos “Esponsais”, talvez). E isto faz-me pensar na questão da repressão (política, social, sexual). Foi uma tensão que veio a lume na vossa análise destas obras?
Creio, na minha maneira de ver e sentir, que há aqui momentos de revolta interior. Talvez... De agonia. Nota-se por vezes uma mensagem de revolta. Aliás, a sua música é um misto de emoções fortes. Há muitos ambientes e cores. Por exemplo, nos “Esponsais”, mais do que na “Fuga”, os estados de espírito de Lopes-Graça estão bem aparentes. É curioso: há momentos nesta obra de pura paz interior, uma paz quase religiosa; mas ao mesmo tempo há momentos de rudez e ansiedade.

É possível tocar Lopes-Graça sem forçar uma leitura maniqueísta?
A dualidade existe, sem dúvida. Mas é isso que torna a sua música tão interessante. Lopes-Graça, com as suas convicções políticas, sociais, musicais, estéticas, é, no fim de tudo, humano, com tudo que isso acarreta de bom e de menos bom. E essa foi a nossa maior preocupação: trazer ao de cima o seu lado humano.

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