Bruno Monteiro (vl), João Paulo Santos (p)
Trata-se muitas vezes Fernando Lopes-Graça (1906-1994) como um agente envolvido em obscuros processos
históricos. Mas, simplesmente, como a tantos outros, aconteceu-lhe o Estado
Novo, que lhe deu ordem de prisão e arresto, lhe censurou escritos e ditos,
criminalizou a profissão, mobilizou o espírito, ilegalizou a vida e, em certa medida,
perigou a posteridade. Por isso há quem o veja à luz do maniqueísmo. Bem o sabe
Bruno Monteiro, que, em declarações ao Expresso, sintetiza assim a questão: “A dualidade existe, sem dúvida. Mas é o que torna [esta] música tão interessante.Lopes-Graça, com as suas convicções políticas, sociais, musicais, estéticas, é, no fim de tudo, humano. Essa foi a nossa principal preocupação: trazer ao de cima o [seu] lado humano.” Coligindo esta importante integral que perpassa
décadas de criação – partindo de um par de expressivas sonatinas, opúsculos 10
e 11, que remontam aos anos trinta, e terminando no algo mórbido “Adágio Doloroso
e Fantasia”, Op. 242, de finais de oitenta –, Monteiro e João Paulo Santos compreenderam
que o maior dos comprometimentos do compositor logo se escorava na definição de
responsabilidade intelectual. Por exemplo, em 1948 (ano da adesão oficial de
Lopes-Graça ao PCP), em Portugal, ser comunista seria, decerto, uma oportunidade
de partilhar de uma dignidade comum, mas Lopes-Graça jamais ignorou que, na
música, a ideologia é como aquelas presenças nas nossas vidas cuja companhia nas
doses erradas envenena e nas inversas inebria. Especificamente na sua dimensão
camerística, aqui, ainda que se identifique impotência na forma, nunca se
vislumbra vulgaridade no conteúdo. Com outra feição – porventura mais vaidosa
ou rancorosa ou sublinhando em exagero miasmas e assimetrias – o que está neste
CD escorregaria em absoluto para um cárcere do qual poderia não tornar. Diria o
violinista que o próprio material proíbe leituras lineares: “Todas as obras são relativamente curtas, mas todas [são] completamente contrastantes. Até dentro de uma mesma peça, todos os andamentos são diferentes entre si. Não há continuidade. Somos obrigados a estar permanentemente a mudar de emoções e a ficar alerta, pois o carácter, a velocidade, a estrutura interior se alteram constantemente.” Depoimento suficiente para se entender que este património não
se deixa cativar por qualquer sistema. Aliás, em tempo algum se fixará em
definitivo o que pressupõe uma identidade cultural de tal modo volátil, um
virtuosismo que não depende só dos caprichos da invenção, sons provocantemente dependurados
das esquinas da tonalidade. Monteiro e João Paulo têm noção de que pode seguir-se
a democracia à ditadura, a liberdade à repressão, e haver sempre quem julgue
que se trocou um inferno por outro. Um disco destes afasta do pensamento tão
sombria ideia.
A entrevista completa:
A entrevista completa:
Muitas das obras incluídas neste vosso CD sofreram correções
desde a data de composição. Tocaram sempre as versões revistas?
Sim. De facto, ao que sabemos, quatro das obras incluídas no CD
sofreram revisões. Três delas pelo próprio Lopes-Graça e uma pelo João Paulo
Santos. As revistas pelo compositor foram as duas sonatinas e “Prelúdio,
Capricho e Galope”. Claro está que tocamos a versão revista. O caso mais
curioso foi o de “Trois Pièces”: depois do Museu da Música Portuguesa me enviar
tudo o que havia para esta formação e também para violino solo, reparei que
estavam incompletas (tanto a parte de violino como a parte de piano). Por um
mero acaso, o João Paulo conseguiu a parte de violino completa que, se não me
falha a memória, estava na posse da Lídia de Carvalho (nem o MMP a tinha) e,
por aí, digamos que ‘completou’ o resto, fazendo uma revisão aprofundada.
Tocámos no início de abril toda a integral em Cascais e o Museu pediu ao João que
lhe enviasse esta obra, exatamente como a tocámos, para ser incluída no
espólio.
Noto que a edição inclui as “Quatro Miniaturas”, op. 218,
na lista de estreias mundiais, mas dou com o mesmíssimo opúsculo num CD editado
em 2010 pela Numérica (“Violino em Portugal”, de Luís Pacheco Cunha).
Sim, houve um lapso! O Luís gravou as “Quatro Miniaturas” há uns
tempos. No entanto, não sei se a mesma versão.
Já que falo noutras gravações: revisito a dos irmãos Vasco
e Grazi Barbosa (num LP da Guilda da Música, de 1972, subsequentemente
reeditado em CD pela Strauss e pela CNM, que inclui as Sonatinas, o “Pequeno
Tríptico” e “Prelúdio, Capricho e Galope”), e, na realidade, a pergunta que se
impõe é: para vocês, foi ou não importante obterem referências interpretativas
quando se decidiram por abordar este repertório?
O João Paulo nunca ouviu essa gravação, penso eu. Eu, por outro lado,
cresci com ela. Aliás, até a nossa surgir, que inclui as mesmas obras e outras
que não foram, então, gravadas, a do Vasco era a única que existia. Gosto muito
dela. Por acaso, nos encontros que tive com o Sr. Barbosa falámos sobre muitas
coisas, mas não acerca das suas gravações. Deram-me uma ideia da escrita para
violino de Lopes-Graça, [que] achei muito difícil, virtuosa. Mas quando as
comecei a trabalhar, não ouvi o CD propositadamente. Quis conceber a minha
própria visão das obras. E quando eu e o João começámos a ensaiar, passámos
muito tempo a tentar encontrar o balanço certo entre a estrutura e a emoção de
cada peça, o enfâse do ritmo (que é um dos pilares fundamentais na música de Lopes-Graça)
e a mensagem musical que pensámos que ele gostaria que fosse transmitida. Claro
que tentámos também pôr algo de nós na interpretação.
O que, dada a questão das estreias, e se é que se pode
colocar as coisas nestes termos, levanta a dúvida: na sua opinião, o que se
perde e o que se ganha sempre que não se possuem essas referências?
O trabalho é muito maior. É preciso começar do nada. Por exemplo, já
tocámos muitas vezes a “Tzigane”, de Ravel, em público. É uma obra muito
difícil em termos de leitura da partitura. Mas como há tantas gravações dela, o
ouvido já está influenciado. [Perante a ausência de referências] podemos moldar
a obra à nossa maneira sem estarmos preocupados com comparações. É por isso
que, para mim, uma das grandes razões para os intérpretes do passado soarem tão
diferentes uns dos outros, ao contrário de hoje, é por não existirem na altura
tantas gravações. Ou seja, todos eles se baseavam apenas e só na partitura e
criavam a sua interpretação com base nesta e no seu porte artístico. E todos
eles estavam corretos. O público não ia ouvir o “Concerto para Violino” de
Beethoven; ia ouvir a interpretação do Beethoven pelo Heifetz, Stern, Milstein,
Kreisler, etc. Hoje em dia parece-me que nem é uma coisa nem outra.
Por outro lado (visto serem tão escassos os materiais de
consulta), imagino que tiveram de esquadrinhar o espólio de Lopes-Graça de
forma a obter o maior número possível de informações sobre cada peça, além de
poderem aferir, naturalmente, da viabilidade de gravar uma integral tendo a
certeza que não ficou nada perdido no fundo de uma gaveta, não?
Felizmente não ficou nada perdido. A Teresa Cascudo, que é uma das
musicólogas que mais se tem dedicado à obra de Lopes-Graça mantém um catálogo
onde estão exaustivamente expostas todas as obras do compositor. Por isso foi
fácil. O Museu da Música Portuguesa tinha tudo.
Esta vossa gravação trouxe-me muitas surpresas.
Curiosamente, uma delas foi tomar consciência do quão irredutivelmente modernas
e perfeitamente acabadas, são, de facto, aquelas duas charmosas sonatinas, que
já conhecia. E, além do pavor à vulgaridade, o que se sente é um irreprimível
desejo em Lopes-Graça de produzir algo original à escala europeia! Como foi projetar
esse idealismo praticamente juvenil na vossa interpretação?
Concordo plenamente! O que eu acho é que Lopes-Graça, mesmo nas suas
obras de juventude, tem já uma linguagem musical muito própria e definida. Não
soa a algo de que dizemos: ‘pois, faz-me lembrar este ou aquele compositor’. Há
sem dúvida, uma diferença bem marcada entre a 1ª e a 2ª sonatinas. A 2ª é muito
mais rebuscada em termos harmónicos e na estrutura da própria obra. Abre com um
andamento inteiramente para violino solo e o último é devastador em termos
técnicos. O que tentámos fazer foi, muito simplesmente, quase ignorar o facto
de serem obras de juventude e interpretá-las com a mesma profundidade que,
por exemplo, o “Adágio Doloroso e Fantasia”, que foi a sua última obra
para violino e piano.
Como é interpretar obras de períodos históricos tão
distintos no âmbito de um só CD?
Como dizia na resposta anterior, não olhámos a diferentes períodos, mas
sim ao todo da integral e à linguagem de Lopes-Graça. Embora de diferentes
épocas, todas elas têm certas características em comum. Em algumas delas, ainda
que não completamente óbvias, já com um prenúncio anunciado.
Por outro lado, outras destas peças – penso em “Trois
Pièces” ou em “Quatro Miniaturas” – reforçam uma ideia que costumo associar a Lopes-Graça:
a de que se estava sempre a tentar provar. E normalmente quem age assim corre o
risco de não ser inteiramente convincente. Como é que vocês lidam com a
responsabilidade de apresentar uma integral (e logo de modo tão panorâmico, dos
anos 30 aos 80) em que, é certo e sabido, há a hipótese de vir ao de cima tudo
o que de melhor e menos bom houve na expressão artística de um compositor?
O mais importante para nós, independentemente de obras que possam ser
vistas como menos conseguidas, foi extrair o máximo de ‘sumo’ de cada uma.
Mesmo numa obra como “Quatro Miniaturas”, que é muita curta e óbvia, foi tentar
fazer cada peça com o carácter certo, as articulações, os exageros de
dinâmicas. Aliás, penso que, por vezes, é mais difícil tocar uma obra curta do
que uma obra grande: quando tocamos, por exemplo, a “Sonata para Violino e Piano”
de César Franck (que demora 30 minutos), como é uma obra cíclica, a pessoa
começa e vai embalada, pois tudo gira à volta do mesmo. Para mim, o que
foi desafiante neste projeto é que todas as obras são relativamente curtas, mas
todas elas completamente contrastantes. Mesmo até dentro de uma só peça, todos
os andamentos são diferentes entre si. Ou seja, não há continuidade. Somos
obrigados a estar sempre a mudar de emoções e também sempre alerta, pois o
carácter, a velocidade, a estrutura interior muda constantemente.
Já agora, qual a importância de fazer a integral?
Para mim foi um desafio pessoal, artístico e também cultural. Pessoal,
pois nunca tinha tocado Lopes-Graça. Conhecia algumas das obras para violino,
obras para canto e piano e o “Quarteto de Arcos nº2” e o “Canto de Amor e de
Morte” que foram gravados pelo Quarteto de Cordas do Porto, do qual o primeiro
violino (Carlos Fontes) foi meu professor em Portugal. Artística, pois há intérpretes
que tocam sempre o mesmo tipo de música: ou são ‘especializados’ em Mozart ou
em música contemporânea ou só tocam românticos, etc. O meu repertório é muito
vasto e tento variar o mais possível. Tanto toco Bach, como Szymanowski, como
Beethoven ou Lopes-Graça. Claro que há ‘máscaras’ que nos assentam melhor de
que outras. Por fim, cultural, pois havia uma falha de não haver a gravação
integral da sua obra para esta formação. Felizmente a Naxos deu-me carta-branca
para o fazer.
O que lhe parece que aprenderam sobre Lopes-Graça neste
projeto a que se propuseram? E além das obras propriamente ditas, é importante
estudar o contexto em que elas surgiram?
Penso que Lopes-Graça foi um homem do seu tempo, que viveu intensamente
as suas convicções e que teve momentos de alegria e tristeza. Sinto isso em
toda a sua obra. Se ouvirmos, por exemplo, os andamentos lentos, a sensação que
me dá é a de que era um homem com muita emoção interior, com calor humano. Já
no “Galope” vemos um homem eufórico, vibrante.
O que também se vai notando ao longo do CD é aquilo que
sempre me pareceu uma certa deriva... Alguma incapacidade de Lopes-Graça em
ultrapassar a encruzilhada de ideologias com que se deparava, ainda que esta
música nunca seja resignada a essa condição, por mais que reflita uma
consciência em crise (aqui, penso mais na “Fuga” para violino solo e nos
“Esponsais”, talvez). E isto faz-me pensar na questão da repressão (política,
social, sexual). Foi uma tensão que veio a lume na vossa análise destas obras?
Creio, na minha maneira de ver e sentir, que há aqui momentos de
revolta interior. Talvez... De agonia. Nota-se por vezes uma mensagem de
revolta. Aliás, a sua música é um misto de emoções fortes. Há muitos ambientes
e cores. Por exemplo, nos “Esponsais”, mais do que na “Fuga”, os estados de
espírito de Lopes-Graça estão bem aparentes. É curioso: há momentos nesta obra
de pura paz interior, uma paz quase religiosa; mas ao mesmo tempo há momentos
de rudez e ansiedade.
É possível tocar Lopes-Graça sem forçar uma leitura
maniqueísta?
A dualidade existe, sem dúvida. Mas é isso que torna a sua música tão
interessante. Lopes-Graça, com as suas convicções políticas, sociais, musicais,
estéticas, é, no fim de tudo, humano, com tudo que isso acarreta de bom e de
menos bom. E essa foi a nossa maior preocupação: trazer ao de cima o seu lado
humano.
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