Bach, C. P. E.: Magnificat; Heilig ist Gott (Harmonia
Mundi, 2014)
Elizabeth Watts (s), Wiebke Lehmkuhl (a),
Lothar Odinius (t), Markus Eiche (b), RIAS Kammerchor, Akademie für Alte Musik
Berlin, Hans-Christoph Rademann (d)
Bach, J. S.: Oster-Oratorium; Actus Tragicus
(SDG, 2014)
Hannah Morrison (s),
Meg Bragle (a), Nicholas Mulroy (t), Peter Harvey (b), The Monteverdi Choir,
The English Baroque Soloists, John Eliot Gardiner (d)
Haydn: Die sieben letzten Worte unseres
Erlösers am Kreuz (Harmonia Mundi, 2014)
Cuarteto Casals
No Domingo de Ramos de 1786, sob o
patrocínio de uma escola comercial de inclinação humanista, e em benefício de
uma associação médica consagrada ao cuidado gratuito de pacientes
desfavorecidos, Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788) apresentou, em Hamburgo,
um concerto de correspondente preponderância ética, iniciado com o ‘Credo’ da
“Missa em Si menor” de seu pai, Johann Sebastian, prolongado num par de páginas
memoráveis de “O Messias”, de Handel (‘Pois eu sei que o meu Redentor vive’ e ‘Aleluia’),
e concluído com um trio de obras por si assinadas: uma sinfonia recheada de
dissonância (provavelmente a primeira, em Ré maior, do volume
“Orchester-Sinfonien”, publicado em 1780), o expressivo “Magnificat” e esse sanctus caleidoscópico que é “Heilig ist
Gott”. Três opúsculos que, agora, em ano de tricentenário, se reúnem num CD
que, ao reforçar tensões entre inquietação espiritual e progresso histórico,
espelha a ambição pedagógica do programa original. De facto, então, também
Emanuel Bach – tal como Immanuel Kant – se propunha discutir estética, génio,
finalidade da arte, autonomia moral ou liberdade individual. Convenientemente,
o coro RIAS, Hans-Christoph Rademann e o operático quarteto vocal enjeitam a
estabilidade e trazem a lume um caráter insistentemente errático, impulsivos no
“Magnificat”, ominosos no “Santo é o Senhor”, à beira da histeria no allegro da sinfonia. Não será para todos
os gostos mas, de repente, até a sua luxuriante licenciosidade se mostra francamente
recomendável. Numa carta, o compositor descreveu ‘Heilig’ deste modo: “No
domínio do mais angustiado cromatismo, será o meu canto do cisne, e a garantia de
que não serei esquecido quando morrer”. Nada mais pascal do que a preocupação
com a posteridade.
Da morte e ressurreição de Cristo
tratou J. S. Bach (1685-1750) como ninguém, apesar de não ser este “Oratório de Páscoa” (BWV 249) tão conceituado quanto as ‘Paixões’, nem tão teatral, ainda
que do espírito dessas, em sucessivas revisões, tenha usufruído. Aliás, no
âmbito da obra coral de Bach, John Eliot Gardiner não hesita em considerá-lo
uma espécie de “patinho feio”. É, no entanto, jubilante, distinto e dramático,
e é assim que, aqui, é exposto – mal o coro exclama aquele “Kommt, eilet und
laufet” (“Vinde, apressai-vos e correi”) logo se imagina os fiéis a pular do
genuflexório. A acompanhá-lo surge “Actus Tragicus” (BWV 106), a cantata
fúnebre do “Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit” (“o tempo de Deus é o melhor
de todos os tempos”) e de uma melancolia que seria monótona se não fosse tão
doce. Julga-se que date de 1707, tinha Bach vinte e poucos anos, e prova-se
nesta gravação especialmente catártica, embora de uma serenidade continuamente
consoladora, como um agasalho pelas costas numa noite fria. Gardiner resiste à
tentação de administrá-la com energia e arrisca a redundância, mitigando o
impacto dos mínimos recursos que exige: duas flautas de bisel, duas violas da
gamba, órgão. Mas é acertada a sua escolha de a conduzir à maior das
fragilidades, que é a que sustenta o sopro derradeiro. Nisso mesmo – nas “sete
palavras de Jesus na cruz” – se inspirou Joseph Haydn (1732-1809) ao compor esta
peça que o Cuarteto Casals nos traz na sua versão para quarteto de cordas,
seguramente de 1787 e, ao que tudo indica, em Cádis, estreada na Sexta-Feira
Santa desse ano. Cativante exercício de dilatação temporal, mais que a sua
propriedade pesarosa sai daqui fortalecida a sua firmeza melódica, mais do que
da miragem da eternidade vem falar da certeza da vida. Notável.
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