5 de abril de 2014

V/A: “Vinicius de Moraes: A Arca de Noé” (Sony, 2013)



Noé sempre pareceu uma adenda à estória que Vinicius de Moares (1913-1980) quis contar. Aliás, a deixar-se inspirar por partículas de ficção evangélica, dir-se-ia o poeta brasileiro menos entusiasmado pelas desventuras do “único homem justo da terra” do que pelas parábolas de um antepassado seu, Enoque, e pela apocrifia cataclísmica de “O Livro dos Sonhos”, onde os egípcios são ursos, os filisteus cães, os assírios hienas ou os amonitas raposas. Até porque aos versos que ia compondo para os seus filhos Susana e Pedro, em 1970 reunidos no tomo “A Arca de Noé”, extraia o formalismo salvífico e imprimia um caráter satírico, ocasionalmente sanguinário, jamais condescendente. Há um tigre e um leopardo mortos por um leão “com cada mão”, um pato que “foi pra panela”, um tico-tico que “morreu de congestão” ou um pinto que conclui: “Gosto muito dessa vida/ Ensopada ou cozida/ Até assada é divertida// (…) Mesmo sendo à cabidela/ Pois será na panela/ Meu fim”. Pressente-se pela obra a preeminência de uma moral que tem mais a ver com a de “As Fábulas de La Fontaine” do que com a bíblica, sintetizada no fatalismo social do tema-título: “Indo em fila, aos casais/ (…) Vão saindo os animais// Os maiores vêm à frente/ trazendo a cabeça erguida/ E os fracos, humildemente/ Vêm atrás, como na vida”.

Além da intertextualidade, Vinicius pode ter tido em mente outros clássicos, pois ‘O Leão’, ‘O Pintinho’, ‘O Pato’ e ‘O Gato’ logo trazem à memória “O Carnaval dos Animais”, o “Bailado dos Pintainhos a Sair dos Ovos” ou “Pedro e o Lobo. Claro que nada disto passou para a adaptação musical dos poemas, na maior parte feita por Toquinho, estreada num programa de televisão em outubro de 1980, tinha há três meses falecido Vinicius, e, ainda postumamente, num par de LP de 1980 e 1981. É esse repertório que, em 2013, ano de centenário, decidiu Susana recuperar com o apoio da sua companheira, Adriana Calcanhotto. Esta, que, parafraseando Marx, dá mostras de querer pertencer voluntariamente a qualquer clube que a aceite como membro, pautou-se por escolhas previsivelmente elitistas: ignorou Toquinho e convocou a nata baiana (Gal, Bethânia, Caetano), os Buarque de Hollanda (Chico, Miúcha), o clã Jobim (Paulo, Daniel, Maria Luiza) ou o escol carioca (Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Zeca Pagodinho, Erasmo). À exceção da Jobim imortalizada por Tom no verso “É do cabelo amarelo”, gente entre os 40 e os 70, mais velhos que as canções. Os resultados, porém, rejeitam o conservadorismo e vão do estado de graça (Gal, Caetano, Zeca, Chitãozinho & Xororó) ao engraçado (Chico, Erasmo, Mart’nália, Antunes) sem que, não obstante as suas lúdicas qualidades, afastem do pensamento esta ideia de que ao tratar do apocalipse dos animais estava Vinicius também a tratar do seu e do de todos nós.

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