Anda pelas bocas do mundo – conferir na produção recente de Seu Jorge, Roots, Peter Gabriel ou Phil Collins – e não há sinal que dele deixemos de ouvir falar tão cedo. Porque para além das mesmas razões de sempre (tributos, crises criativas, finalizações de contrato, etc) ganhou alento essa ideia de que não há hoje quem o dispense para comprovar um carácter de absoluta singularidade. Ou seja, o outrora famigerado ‘álbum de versões’ tornou-se agora um instrumento de que se servem os mais distintos estetas para se definirem enquanto perenes originais. Não que do Chico Buarque de “Sinal Fechado” ao Nick Cave de “Kicking Against the Pricks” não se encontre um punhado de precedentes capaz de documentar a asserção. Mas a verdade é que a sua atual valorização é inédita. Talvez por isso, três anos após “Matizes” e pela primeira vez desde que em 1976 se estreou com “A Voz - o Violão - a Música de...”, venha Djavan sublinhar traços autorais na sua obra através de material alheio. Logo porque a escolha do repertório se submete à sua memória artística (com o conformismo de quem paga uma prestação surgem ‘Oração ao Tempo’, de Caetano Veloso, ‘Palco’, de Gilberto Gil, ou ‘Valsa Brasileira’, de Edu Lobo e Chico Buarque) e às suas recordações de infância (cruzando-se ‘Sabes Mentir’, ouvida na voz de Ângela Maria, com ‘Treze de Dezembro’, de Luiz Gonzaga), mas, fundamentalmente, porque a forma como aqui se afirma enquanto intérprete (um espécie de instrumentista de música clássica em dia de folga) reforça uma insuperável problemática na sua carreira: Djavan trabalha frequentemente no sentido contrário ao da natureza das coisas. E é um facto que quanto mais altera ritmos e harmonias, improvisa e testa a elasticidade destas canções, menos próximas ficam elas de se cumprirem na sua voz. E se não for para isso, porquê, então, pegar-lhes de todo?
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
27 de novembro de 2010
20 de novembro de 2010
Segun Bucknor “Who Say I Tire”
Quando em 2002 a Strut produziu uma antologia consagrada às gravações de Segun Bucknor – “Poor Man No Get Brother: Assembly & Revolution 1969-1975” – parecia estar a corrigir uma desatenção histórica. Mas hoje, sem vestígios no mercado desse peregrino lançamento, servem os mesmos onze temas de espinha dorsal a uma compilação de dezasseis que desperta uma recepção em tudo semelhante. Em que é que ficamos? Talvez na inevitabilidade de considerar que a história não o quer, não o merece ou, no mínimo, que no que diz respeito à música nigeriana prossegue um caminho de acumulação de factos quando lhe é impossível gerar conhecimento. Oportunamente, “Who Say I Tire” repete a ideia de que há elementos para além de Fela Kuti na génese do afrobeat, que as aventuras de Ginger Baker em Lagos não tiveram exclusivamente consequências para os Air Force e que após a audição de James Brown logo houve quem procurasse tornar-se o ‘soul brother number one and a half’. Nada de novo mas algo que sistematicamente se esquece. Mesmo se – num plano editorial que inclui volumes individuais dedicados a Sir Victor Uwaifo, Fred Fisher, Victor Olaiya ou Orlando Julius – proliferam nas lojas títulos que parecem ter sido criados para mestrados de etnomusicologia ou encomendados para aumentar a infalibilidade das mais obscuras pesquisas no Google: “Nigeria 70: The Definitive Story of 1970’s Funky Lagos”, “Nigeria Special: Modern Highlife, Afro-Sounds and Nigerian Blues 1970-76”, “Nigeria Disco Funk Special: The Sound of the Underground Lagos Dancefloor 1974-79”, “Nigeria Rock Special: Psychedelic Afro-Rock & Jazz Funk in 1970s Nigeria” ou “Lagos Disco Inferno”. Ainda assim, ficará próximo de compreender o que move um Homem quem se deixar contaminar por estes ocasionalmente exemplares exercícios suspensos entre duas ditaduras: a do regime e a do ritmo.
13 de novembro de 2010
Carmen Miranda "Hoje"
Se pela destreza de acompanhantes e génio de compositores nunca foram, em rigor, exclusivamente seus os discos que Carmen Miranda editou, neste caso ter-se-á que elevar a figura de Henrique Cazes da condição de ideólogo para a de co-autor. Porque a isso obrigam os 70 anos que separam o outrora mentor do Conjunto Coisas Nossas destas gravações da ‘pequena notável’, porque a visão que impõe nos arranjos e remistura actualiza-as de acordo com actuais parâmetros de acústica e, fundamentalmente, porque é impossível confundir a sua acção com um acto de revisionismo estético. Muito pelo contrário, os violões e cavaquinhos (seus e de Luís Filipe Lima), sopros (de Dirceu Leite) e percussão (do seu irmão, Beto Cazes, e de Ovídio Brito) que juntou aos de tantas décadas atrás vêm, precisamente na combinação com os sons que a rodeavam, esclarecer o singular posicionamento da voz de Carmen, revelando assim, em exemplares e inéditas condições, um arsenal técnico de moderníssima configuração: invulgar domínio de métrica, absoluto controlo da respiração, solidez tonal, inconfundível timbre ou – dramaticamente, quando comparada com a produção nos E.U.A. nos anos 40 – um distinto deleite na articulação da língua portuguesa. Peca a edição – com produção de Ruy Castro, autor em 2005 da biografia “Carmen” – apenas por escassez (do mesmo período, o da Odeon, poderiam também aqui figurar ‘E Bateu-Se a Chapa’, ‘O Tic-Tac do Meu Coração’, ‘Cantores de Rádio’, ‘Quando Eu Penso na Bahia’, ‘Na Baixa do Sapateiro’ ou ‘Boneca de Pixe’) e por omissão (são ignorados colaboradores como a irmã Aurora, Almirante, Laurindo Almeida, Russo do Pandeiro, Bando da Lua, Garôto, Benedito Lacerda, Luperce Miranda ou Luís Americano e os cantores nos dois duetos – Dorival Caymmi em ‘O Que é Que a Baiana Tem’ e Luiz Barbosa em ‘No Tabuleiro do Samba’). Fora isso, é cinco estrelas.
6 de novembro de 2010
Afrocubism
O projecto “Afrocubism”, à primeira vista, parecerá interesseiro. E de nenhum assomo de cinismo dependerá a perspectiva que o qualifique como um entre os muitos que, caindo na progressivamente mais equívoca designação de ‘música do mundo’, servem estritamente o interesse pessoal dos seus intervenientes aparentando o desprendimento dos que satisfazem impulsos humanistas. E pela sua discreta capa – uma ilustração que traz à memória a elegância formal do trabalho de David Stone Martin nos anos 50 para editoras como a Clef ou Norgran –, pressentir-se-á um calculado esforço em iludir os mecanismos de instantânea incensação que normalmente acompanham produções desta natureza a favor de uma mais subtil referência ao período de definição estética do cubop enquanto paradigma do ‘encontro de culturas’. Isto porque, assim, caberá a outros explicar aquilo que aqui se passa: a concretização, ao fim de 14 anos, do conceito inicialmente traçado para “Buena Vista Social Club” e em 1996 gorado pela impossibilidade de Bassekou Kouyate e Djelimady Tounkara viajarem do Mali até Cuba ao encontro de Ry Cooder. Ou seja, “Afrocubism” chega com mais de uma década de atraso, num momento em que, independentemente da volta que se lhe dê, o ‘original’ jamais venderá os oito milhões de exemplares do ‘plano b’, e após se ter esgotado o filão então descoberto em múltiplas prequelas e sequelas, não ignorando que no mesmo universo ficcional se estabeleceram já convincentemente Kélélé, Africando ou Los Afro-Salseros de Senegal en la Habana. Porque, então, tão pouco lhe belisca a dignidade? Resumindo, porque numa paradoxal prova de maturidade, Eliades Ochoa, Kouyate, Tounkara, Toumani Diabaté, Kasse Mady Diabaté e Lassana Diabaté se entregam ao exercício como se se estivessem perfeitamente a borrifar para estas considerações. Essa é a sua lição.
Algumas capas de David Stone Martin:
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