25 de abril de 2015

Entrevista a Anouar Brahem



Estamos no bar do hotel Kempinski Vier Jahreszeiten, em plena Maximilianstrasse, e o mundo dilui-se em fórmulas publicitárias. Até o borriço desta fria manhã de 5 de dezembro parece de marca. Passamos os olhos por uma lista com 20 variedades de champanhe e é Brahem, sensível à impotência poética disto tudo, que faz a primeira pergunta: “Como está o tempo em Lisboa? Sei que ainda falta muito, mas, em Túnis, ao apanhar o avião para Munique, senti-me como se estivesse a dizer adeus à primavera.” Pensava que não queria falar da Primavera Árabe, respondo. “Pois não”, prossegue: “Quero discutir assuntos mais sérios!” Encontramo-nos por ocasião da estreia europeia de “Souvenance”, o seu novo álbum na ECM, editora para a qual grava há 25 anos. Vencendo os nervos, com o seu distinto quarteto e a Orquestra de Câmara de Talin, havia-o na véspera apresentado no Teatro do Príncipe Regente. Digo-lhe que o sucesso foi de tal ordem que até as estátuas nas arcadas aplaudiram de pé. Algo desconfiado, Anouar sorri, bebe um gole da sua água com gás, põe mais açúcar no café, desembacia os óculos, desembaraça-se da ironia, volta à carga e a conversa podia ter durado até hoje: “A sério, o que achou do concerto? Qual foi a sua primeira impressão?”

Assim de repente, em comparação com o CD, diria que me surpreendeu sentir que, ao vivo, o coração desta música está no pulsar do baixo elétrico.
É capaz de ter razão! E sabe o mais engraçado? Quando comecei a compor não vislumbrava um lugar para o baixo. Andava em digressão, com o Björn [Meyer, baixista] e o Klaus [Gesing, clarinetista], a promover o meu último disco [“The Astounding Eyes of Rita”, 2009], e sentia uma enorme coesão nos nossos espetáculos. E era frustrante, porque queria que continuássemos a trabalhar em conjunto, mas pura e simplesmente não havia espaço para eles nesta música. Por mais que desse voltas ao assunto só ouvia o piano do François [Couturier] e as cordas. E depois nem isso. Foi então que comecei a sentir a necessidade de procurar um… uma espécie de…

Narrador?
Exatamente. Quanto mais trabalhava, mais se impunha esse papel… Praticamente dramatúrgico.

Esse período em que parou de compor foi o do ‘Janeiro de 2011’?
Sim. Com toda a agitação política, com o que se passava nas ruas, com aquela inesperada sucessão de factos tão extraordinários… Todo o meu tempo, toda a minha energia, se consumiu. O nosso dia-a-dia era um acumular de emoções imensas… Havia a coragem mas também o medo… O alento e o desânimo. Cada segundo que passava era um choque. Era como tomar decisões e não ter ideia das consequências. Nesses momentos, de anseio e temor, olhava para as peças em que estava a trabalhar e pareciam-me tão desinteressantes… Tão banais.

Sentia que a sua música estava a ser ultrapassada pela História?
De certa forma. Ou, pelo menos, que não tinha significado nenhum – o que, se calhar, vai dar ao mesmo. Tive de aguardar e procurar uma nova voz. Foi um processo longo e penoso, esse, de estar à espera daquele instante preciso em que uma coisa qualquer que fizesse não me parecesse anacrónica face ao rumo dos acontecimentos. Acho que esse sentimento ficou na música.

Nota-se uma ausência… Mas não ficamos a saber se a História nos ultrapassa ou se está apenas suspensa, o que é um paradoxo, mas…
Tenho amigos em Túnis que me disseram que esta música é como a calma antes da tempestade. Mas isto para mim é muito difícil de avaliar. Não faço nada voluntariamente. Isto é, trabalho mais de maneira intuitiva, espontânea. Mas você falava em ausência e em…?

Paradoxo?
Talvez seja um modo correto de a descrever, sim. Porque há aqui elementos muito contrastantes. Algo que tem a ver com o que se vivia naquele período. Mas eu nunca cheguei ao desespero, por exemplo. Senti-me próximo da desilusão, isso sim, mais do que uma vez. E sempre que a esperança era travada por impasses políticos ficava muito apreensivo. Mas há definitivamente uma ambiguidade nesta música.

Bem, ontem, no concerto, dei por mim a hesitar entre a melancolia e a serenidade.
É curioso falar-me nisso. Eu nunca choro quando estou triste, sabe? Choro de felicidade. Mas às vezes nem distingo a emoção que está na base de cada estado de espírito. Talvez seja até uma só, indefinida. Ou quiçá derive tudo da memória… Daquilo que possuímos de único.

Ter sentido a pressão de tantas forças tão conflituosas ensinou-lhe alguma coisa sobre si próprio?
Na minha relação com a música? É possível. O ato de compor é um que nos destabiliza em absoluto. É quase o contrário daquilo que as pessoas pensam. É mergulharmos fundo no interior de nós, ir tocando em coisas que nos magoam, noutras que nos trazem alegria, e ver o que acontece. Mas não faço ideia se chegamos a aprender seja o que for. Mas você fala em forças conflituosas e impõe-se que torne uma coisa clara: eu não quis estabelecer uma relação direta entre a minha música e os acontecimentos na Tunísia. Não reivindico isso, de modo algum. Nem a minha música os tenta sublimar ou traduzir. Aliás, uma iniciativa dessas parecer-me-ia muito suspeita e desonesta, a roçar o oportunismo.

Porque seria manipuladora ?
Sim, a vários níveis. Antes de mais, face aos ouvintes. Não desejo impor uma agenda, forçar um ângulo qualquer. Toquei o disco em Túnis – onde já não atuava há quatro anos – e, após o concerto, muitos jornalistas me perguntavam se esta música falava da revolução… Da democracia. E eu dizia-lhes que não, que falava apenas de música. Acho que eles ficavam desiludidos.

A capacidade de transformação patente na própria música não lhes chegava?
Parecia-lhes tudo demasiado abstrato. Tem a ver com aquilo que você há pouco dizia: com a ausência. Isso diz-me muito. Por exemplo, quando comecei a pensar na capa do disco, as imagens que me vinham à cabeça eram sempre as de uma rua deserta… De uma cidade deserta. E acho que esta música tem espaços similares, nus, algo inacessíveis. Mas, em concerto, também já me aconteceu sentir que eram precisamente esses os pontos de maior proximidade com o público.

Diria que a orquestra de cordas reforça essa ambiguidade: torna cada peça mais transparente mas também mais densa, mais delicada mas igualmente mais expressiva. É como uma emanação do inconsciente da própria música.
Ah, isso é muito interessante! Porque, em relação às cordas, digo-lhe já o que não queria fazer: acima de tudo, não queria associar-me a essas práticas muito fantasiosas, do tipo árabe que recorre a clichês sinfónicos tanto para se afirmar digno da música ocidental quanto para escapar à sua própria tradição, sabe? Tive convites de orquestras e de festivais, no passado, para fazer algo do género, mas sempre me pareceu artificial… Tudo muito tingido pelo orientalismo. E eu quis resistir a isso, a que certos aspetos da música árabe pudessem ficar…

Exóticos?
Pior: anedóticos. Por isso trabalhei muito para que as cordas ganhassem uma função orgânica nesta música.

E, no entanto, no encore do concerto, é como se estivesse em palco uma daquelas orquestras egípcias de antigamente!
Sim! É um tema só: o único em que tocamos a melodia em uníssono com a orquestra. Transmite a ideia daquelas orquestras de cordas árabes, pletóricas, de que não gosto nada, que acho imensamente kitsch. Mas não resisti à força daquela melodia. São imposições da própria música. Eu próprio, com o alaúde, improviso de forma diferente nestas peças. Sinto-me quase limitado por elas, como que a andar por um sítio que não conheço. Olhe: aí tem outro paradoxo. Chega a ser angustiante!

Então responda-me a isto: a memória, para que “Souvenance” remete, tem a ver com o passado ou é uma projeção para o futuro?
Só com o passado não terá, pois nós possuímos o infeliz condão de deixar o mundo irreconhecível à nossa passagem. A ter a ver com o futuro… Só se for porque lhe extrai algo: aquilo de nós, de mais humano, que desejamos conservar, talvez? Não sei se é isso a esperança. Pelo menos devemo-nos deixar despertar para tal possibilidade tanto quanto os povos devem saber despertar para a mudança.

18 de abril de 2015

Billie Holiday "God Bless the Child: Best Of…" (Verve, 2015) & José James "Yesterday I Had the Blues: The Music Of Billie Holiday" (Blue Note, 2015) & Cassandra Wilson "Coming Forth By Day" (Sony, 2015)



Caso lhe viesse a pegar, não seria difícil imaginar a sua reação. Ficaria a olhar, com aquela máscara estampada no rosto, variando sucessivamente entre o “escárnio, uma certa impaciência e uma profunda tristeza”, conforme a caracterização de Max Jones em “Jazz Talking” (um livro de crónicas em que o jornalista do “Melody Maker” recorda o tempo passado com a cantora durante a sua deslocação ao Reino Unido, em 1954), e pela sua cabeça talvez se formasse qualquer coisa parecida com o que escreveu Plath em “Um Presente de Aniversário”: “Isto, sob este véu, o que é/ Será feio, será bonito”? Não obstante, por se dedicar essencialmente à música, e por equilibrar facto e fantasia num momento em que a realidade virtual vale mais do que a verídica, “The Musician and the Myth”, a biografia que lhe acaba de consagrar John Szwed (autor de “Space is the Place: The Lives and Times of Sun Ra” ou “Alan Lomax: The Man Who Recorded the World”), é a melhor prenda que Billie Holiday poderia receber neste mês em que faria 100 anos. Começa assim: “Os que tentaram escrever sobre si descobriram que há muitas Billie Holiday: uma jovial e alegre, outra amargurada e destinada a sofrer; uma que guincha como uma gaiata e outra que murmura como uma mulher madura.” E prossegue desta maneira: “Coloquem 50 ou 60 fotos suas em cima da mesa e vão ver uma figura corpulenta e uma sílfide coberta de seda, uma africana e uma asiática, uma petulante miss e uma bêbada incurável, o retrato de uma condenada num registo criminal e o sorriso de uma mãe de família em pose com um animal de estimação.”

Isto é, tanto quanto a sua voz, acredita-se que também a sua cara nunca mentiu. Acerca da cantora em início de carreira, por exemplo, escreveu Alice Adams em “Listening to Billie”: “De repente ali está ela, e todos o sabem, ainda que tenham de rodar o pescoço para trás para a ver, porque entrou pela porta principal do clube como se fosse uma pessoa qualquer. Ou melhor, como se não fosse, de todo, uma pessoa qualquer: ela é mais bela e cintilante do que os demais, inclinando a face para a frente como se fosse cheirar uma flor, confiante e ansiosa, vigilante e amável, maçãs do rosto claras e altas, um sorriso imaculado, de gardénia creme atrás da orelha.” Desta Billie colocou-se há pouco no mercado a antologia quádrupla “Lady Day: The Master Takes and Singles” ou “The Centennial Collection” (ambos Sony), uma compilação de 20 temas. Já Maya Angelou, no autobiográfico “The Heart of a Woman”, descreveu uma “mulher doente e só, com a boca em forma de cais”. É dessa que “God Bless the Child” se ocupa: da que morreu em 1959, aos 44 anos, e que, de facto, já então cantava como se tivesse atingido os 100.

A seleção reúne gravações captadas entre 1952 e 1957 e originalmente lançadas em lúgubres LP da Clef e da Verve como “Billie Holiday Sings”, “Music for Torching”, “Lady Sings the Blues” e “Songs for Distingué Lovers”. O sádico de serviço foi José James, que naturalmente escolheu repertório confundindo o sujeito do enunciado com o sujeito da enunciação. Nessa perspetiva, dir-se-ia mais uma vítima da estratégia que Holiday gerou quando já não conseguia mobilizar a ambiguidade e atribuía uma espécie de dimensão biográfica pré-existente a textos que muito a precederam. Era a Billie do drama e trauma contínuo. A Billie em que memória e ficção se infiltravam uma na outra deixando-lhe a identidade em cacos. A Billie cuja disfunção se media pelo seu próprio alcance metafórico, personificando mágoa, traição, saudade, rejeição. Até a linguagem lhe doía, reduzindo as palavras a cemitérios de letras e patenteando um arsenal de gemidos e grunhidelas, roncos e rosnadelas a representar o impronunciável, um fôlego possuído pelas partículas que lhe tiravam anos à vida. Ainda assim, o seu instinto colocava-a sempre do lado das canções.  

Não admira que James, neste “Yesterday I Had the Blues”, venha agora prestar homenagem a quem “transformou a tragédia em arte”. Ou, muito menos, que seja abordando canções do mesmo espaço poético que Cassandra Wilson a evoque com “Coming Forth By Day”. Possuem o mérito de não problematizar o luto mas parecem irradiar de um centro narcísico semelhante, ainda que provenham de estéticas diametralmente opostas: James acompanhado por um trio (Jason Moran, John Patitucci, Eric Harland) que evoca o tipo de classicismo pelo qual Holiday nunca se interessou; Wilson rodeada por membros dos Bad Seeds (Thomas Wydler e Martyn Casey), por T-Bone Burnett, Nick Zinner ou Van Dyke Parks, imprimindo aos materiais uma afetação a que, apesar de tudo, Holiday sempre tentou resistir.

Rihm: Et Lux (ECM, 2015)



Dir-se-ia um requiem situado em território aporético, este, que Wolfgang Rihm batizou “Et Lux”. E, não obstante não recorrer, agora, às palavras do poeta, como tinha feito em “Deus Passus”, um que parece encontrar abrigo numa frase de Celan: “Fala verdade quem diz sombra”. O compositor sintetiza-o assim: “Nesta obra podem ouvir-se excertos da Missa de Requiem católica; no entanto, não estão nem intactos nem aparecem na ordem certa. Surgem, antes, como componentes de um todo de que se vai tomando consciência de modo progressivo. A reincidência em grupos específicos de palavras é significativa. Talvez dessa maneira, circular, reflexiva, possa o seu sentido, consolador e, contudo, tão perturbador, tornar-se mais percetível.” O caráter elíptico de “Et Lux” (para quarteto vocal e quarteto de cordas, mas, aqui, com as vozes dobradas) logo desponta em “Te decet hymnus, [Deus], [in] Sion, [et] tibi reddetur votum [in] Jerusalem” ou “Requiem [aeternam] dona eis, [Domine]”, em que se omitem os vocábulos entre parênteses retos. A partir daí, prossegue de forma mais lacunar e fragmentária, até dispensar da maior parte do texto. O procedimento lembra uma declaração de Rihm a propósito de outra peça em que recorria a ficção sacra: “Se há algum elemento religioso na minha música é o da veneração por aquilo que permanecerá inominado”. “Et Lux” é quase um requiem hermético. Resiste ao poder coercivo da luz que o nomeia e, através da sua própria materialidade, dissipa-se pelas narrativas da memória e dos sentidos. O seu endereço final é a sombra que habita nos que o escutam, os que sabem que nunca se morreu tanto e por tão pouco.

11 de abril de 2015

Billie Holiday "Lady Day: The Master Takes and Singles" (Sony, 2015)



Os editores desconfiavam de si. Afinal, havia algo de muito duvidoso – para não dizer desleal – na sua maneira de cantar. Debruçava-se sobre um poema e caíam-lhe do decote pontos de exclamação e interrogação para cima do texto, salpicando sílabas, cinzelando a semântica. E, por vezes, a sua voz baça parecia seguir mais facilmente essa pontuação figurada do que a real. Depois, claro, notava-se o seu deleite em renunciar aos andamentos dos temas, calculando o avanço que haveria de deixar aos músicos que consigo tocavam e, mais perversamente, aos ouvintes que a escutavam. Decididamente, não: para os preceitos de uma indústria em crise, a braços com as operações de remoção de entulho deixado pela Grande Depressão, era tudo demasiado ambíguo em redor de Billie Holiday. Talvez por isso chegassem tantas partituras a cheirar a mofo às mãos de John Hammond e Bernie Hanighen, os seus produtores iniciais na Columbia: entre as 80 canções desta antologia – e não seria por mais 20 que se comprometeria a sua integridade, logo evidenciada em 2007, data da sua edição original – não se vislumbra uma saída da pena de Harold Arlen ou de Rodgers & Hart, e mesmo as mais requintadas confeções que aqui se encontram, via Kern, Berlin ou irmãos Gerswhin, beneficiavam de um prazo de validade dilatado graças às adaptações cinematográficas de antigos musicais da Broadway então em voga. Tudo isto para relembrar que sempre há quem só veja defeitos onde está apenas feitio. Ou que o estilo de Billie Holiday se afirmou apesar da incoerência do seu repertório primitivo. Isto é, não foi por cantar vulgaridades que se tornou menos inesquecível.

Mas também não demora muito a aparecer quem reconheça a virtude no lugar do vício. O ator Ralph Cooper, assistindo a uma atuação sua no bar Hotcha, em início de carreira, aconselhou que Frank Schiffman a contratasse para o teatro Apollo dizendo-lhe: “Nunca ouviste ninguém cantar tão lentamente, tão ociosamente e tão arrastadamente”, o que nem se afigura como um elogio. Era Billie quem o recordava em “Lady Sings the Blues”, a autobiografia que publicou em 1956, numa altura em que vivia na pele de Nossa Senhora das Dores. O livro deve mais à fantasia do que ao facto e possui uma das primeiras frases mais citadas do seu tempo: “A minha mãe e o meu pai eram ainda duas crianças quando se casaram. Ele tinha dezoito, ela dezasseis e eu três anos.” Mas tem com a verdade a relação – infiel – que o pai manteve com a mãe: os seus pais nunca se casaram, apesar das idades baterem certo. Seja como for, para estômagos fortes, é uma leitura que permite enquadrar o fatalismo que imprimiu às suas interpretações finais ou, no mínimo, o estabelecimento de uma cronologia: “a minha mãe tinha 13 anos quando eu nasci, a 7 de abril de 1915”; “a minha prima Ida batia-me loucamente e não era com um cinto nem com açoites no rabo mas aos murros”; “havia uma casa de putas na esquina da nossa rua e eu fazia-lhes recados”; “ser violada é a pior coisa que pode acontecer a uma mulher e estava a acontecer comigo aos dez anos”; “transformei-me numa prostituta de vinte dólares”; “fui parar à cadeia”; “andei pela 7ª Avenida à procura de trabalho e estava desesperada quando cheguei ao Pod and Jerry’s Log Cabin. Disse que era bailarina e pedi um teste, mas metia dó. O pianista teve pena de mim, e disse: ‘Sabes cantar, pequena?’. Eu respondi: ‘Claro que sei cantar, mas o que é que isso adianta?’. Pedi-lhe que tocasse o ‘Trav’lin’ All Alone’. Fez-se silêncio. Quando cheguei ao fim estavam todos a chorar”; “comecei a saltitar entre clubes”; “apareceu John Hammond, que me apresentou a Benny Goodman e me arranjou uma parceria com o Teddy Wilson e a sua orquestra”; “não me venham com histórias sobre meninas pioneiras em viagem por montes e vales ameaçados por peles-vermelhas. Fui para oeste em 1937 com o Artie Shaw e os montes estavam cheios de tarados brancos”; “não conseguimos nenhum sítio onde me alugassem um quarto e, nos restaurantes, nem na cozinha me deixavam comer”; “a minha mãe só tinha trinta e oito anos quando morreu. Acho que me vai acontecer o mesmo. Vou ficar sempre com trinta e oito anos, quarenta no máximo”.

Falhou por pouco, falecendo aos 44, a 17 de julho de 1959, de um cirrose hepática, após uma sucessão de relações abusivas (com Jimmy Monroe, Joe Guy, John Levy e Louis McKay – aliás, o único senhor que verdadeiramente a amou foi Mister, o seu Pit Bull Terrier), condenações à prisão e depressões alimentadas a álcool e heroína. Não se achava digna de melhor. Mas nestas gravações – captadas entre 1935 e 1941, com Billie a andar de pantufas em redor de Teddy Wilson, Ben Webster, Benny Goodman, Roy Eldridge, Bunny Berigan, Artie Shaw, Lester Young, Chu Berry ou Johnny Hodges – ainda procurava cauterizar as suas chagas. Neste momento, quando encontrava uma letra que a fizesse sentir a sério levantava-a no ar como uma parteira a mostrar um bebé recém-nascido aos pais. Em registos subsequentes, cantava e parecia novamente aquela adolescente a pedir uma audição no Log Cabin, interrogando-se: “O que é que isso adianta?” Só ela o saberia.