Estamos no bar do hotel Kempinski Vier Jahreszeiten, em plena Maximilianstrasse,
e o mundo dilui-se em fórmulas publicitárias. Até o borriço desta fria manhã de
5 de dezembro parece de marca. Passamos os olhos por uma lista com 20
variedades de champanhe e é Brahem, sensível à impotência poética disto tudo, que
faz a primeira pergunta: “Como está o tempo em Lisboa? Sei que ainda falta
muito, mas, em Túnis, ao apanhar o avião para Munique, senti-me como se
estivesse a dizer adeus à primavera.” Pensava que não queria falar da Primavera
Árabe, respondo. “Pois não”, prossegue: “Quero discutir assuntos mais sérios!”
Encontramo-nos por ocasião da estreia europeia de “Souvenance”, o seu novo álbum
na ECM, editora para a qual grava há 25 anos. Vencendo os nervos, com o seu distinto
quarteto e a Orquestra de Câmara de Talin, havia-o na véspera apresentado no Teatro
do Príncipe Regente. Digo-lhe que o sucesso foi de tal ordem que até as estátuas
nas arcadas aplaudiram de pé. Algo desconfiado, Anouar sorri, bebe um gole da
sua água com gás, põe mais açúcar no café, desembacia os óculos, desembaraça-se
da ironia, volta à carga e a conversa podia ter durado até hoje: “A sério, o
que achou do concerto? Qual foi a sua primeira impressão?”
Assim de repente, em comparação
com o CD, diria que me surpreendeu sentir que, ao vivo, o coração desta música
está no pulsar do baixo elétrico.
É capaz de ter razão! E sabe o mais engraçado? Quando comecei a compor
não vislumbrava um lugar para o baixo. Andava em digressão, com o Björn [Meyer,
baixista] e o Klaus [Gesing, clarinetista], a promover o meu último disco [“The
Astounding Eyes of Rita”, 2009], e sentia uma enorme coesão nos nossos
espetáculos. E era frustrante, porque queria que continuássemos a trabalhar em
conjunto, mas pura e simplesmente não havia espaço para eles nesta música. Por
mais que desse voltas ao assunto só ouvia o piano do François [Couturier] e as
cordas. E depois nem isso. Foi então que comecei a sentir a necessidade de
procurar um… uma espécie de…
Narrador?
Exatamente. Quanto mais trabalhava, mais se impunha esse papel… Praticamente
dramatúrgico.
Esse período em que parou de
compor foi o do ‘Janeiro de 2011’?
Sim. Com toda a agitação política, com o que se passava nas ruas, com
aquela inesperada sucessão de factos tão extraordinários… Todo o meu tempo,
toda a minha energia, se consumiu. O nosso dia-a-dia era um acumular de emoções
imensas… Havia a coragem mas também o medo… O alento e o desânimo. Cada segundo
que passava era um choque. Era como tomar decisões e não ter ideia das
consequências. Nesses momentos, de anseio e temor, olhava para as peças em que
estava a trabalhar e pareciam-me tão desinteressantes… Tão banais.
Sentia que a sua música estava a ser
ultrapassada pela História?
De
certa forma. Ou, pelo menos, que não tinha significado nenhum – o que, se
calhar, vai dar ao mesmo. Tive de aguardar e procurar uma nova voz. Foi um
processo longo e penoso, esse, de estar à espera daquele instante preciso em
que uma coisa qualquer que fizesse não me parecesse anacrónica face ao rumo dos
acontecimentos. Acho que esse sentimento ficou na música.
Nota-se uma ausência… Mas não ficamos a
saber se a História nos ultrapassa ou se está apenas suspensa, o que é um
paradoxo, mas…
Tenho
amigos em Túnis que me disseram que esta música é como a calma antes da
tempestade. Mas isto para mim é muito difícil de avaliar. Não faço nada voluntariamente.
Isto é, trabalho mais de maneira intuitiva, espontânea. Mas você falava em
ausência e em…?
Paradoxo?
Talvez
seja um modo correto de a descrever, sim. Porque há aqui elementos muito
contrastantes. Algo que tem a ver com o que se vivia naquele período. Mas eu
nunca cheguei ao desespero, por exemplo. Senti-me próximo da desilusão, isso
sim, mais do que uma vez. E sempre que a esperança era travada por impasses
políticos ficava muito apreensivo. Mas há definitivamente uma ambiguidade nesta
música.
Bem, ontem, no concerto, dei por mim a
hesitar entre a melancolia e a serenidade.
É
curioso falar-me nisso. Eu nunca choro quando estou triste, sabe? Choro de
felicidade. Mas às vezes nem distingo a emoção que está na base de cada estado
de espírito. Talvez seja até uma só, indefinida. Ou quiçá derive tudo da
memória… Daquilo que possuímos de único.
Ter sentido a pressão de tantas forças tão
conflituosas ensinou-lhe alguma coisa sobre si próprio?
Na
minha relação com a música? É possível. O ato de compor é um que nos
destabiliza em absoluto. É quase o contrário daquilo que as pessoas pensam. É mergulharmos
fundo no interior de nós, ir tocando em coisas que nos magoam, noutras que nos
trazem alegria, e ver o que acontece. Mas não faço ideia se chegamos a aprender
seja o que for. Mas você fala em forças conflituosas e impõe-se que torne uma
coisa clara: eu não quis estabelecer uma relação direta entre a minha música e
os acontecimentos na Tunísia. Não reivindico isso, de modo algum. Nem a minha
música os tenta sublimar ou traduzir. Aliás, uma iniciativa dessas
parecer-me-ia muito suspeita e desonesta, a roçar o oportunismo.
Porque seria manipuladora ?
Sim,
a vários níveis. Antes de mais, face aos ouvintes. Não desejo impor uma agenda,
forçar um ângulo qualquer. Toquei o disco em Túnis – onde já não atuava há
quatro anos – e, após o concerto, muitos jornalistas me perguntavam se esta
música falava da revolução… Da democracia. E eu dizia-lhes que não, que falava
apenas de música. Acho que eles ficavam desiludidos.
A capacidade de transformação patente na
própria música não lhes chegava?
Parecia-lhes
tudo demasiado abstrato. Tem a ver com aquilo que você há pouco dizia: com a
ausência. Isso diz-me muito. Por exemplo, quando comecei a pensar na capa do
disco, as imagens que me vinham à cabeça eram sempre as de uma rua deserta… De
uma cidade deserta. E acho que esta música tem espaços similares, nus, algo
inacessíveis. Mas, em concerto, também já me aconteceu sentir que eram
precisamente esses os pontos de maior proximidade com o público.
Diria que a orquestra de cordas reforça
essa ambiguidade: torna cada peça mais transparente mas também mais densa, mais
delicada mas igualmente mais expressiva. É como uma emanação do inconsciente da
própria música.
Ah,
isso é muito interessante! Porque, em relação às cordas, digo-lhe já o que não
queria fazer: acima de tudo, não queria associar-me a essas práticas muito
fantasiosas, do tipo árabe que recorre a clichês sinfónicos tanto para se
afirmar digno da música ocidental quanto para escapar à sua própria tradição,
sabe? Tive convites de orquestras e de festivais, no passado, para fazer algo
do género, mas sempre me pareceu artificial… Tudo muito tingido pelo
orientalismo. E eu quis resistir a isso, a que certos aspetos da música árabe
pudessem ficar…
Exóticos?
Pior:
anedóticos. Por isso trabalhei muito para que as cordas ganhassem uma função
orgânica nesta música.
E, no entanto, no encore do concerto, é como se estivesse em palco uma daquelas
orquestras egípcias de antigamente!
Sim!
É um tema só: o único em que tocamos a melodia em uníssono com a orquestra.
Transmite a ideia daquelas orquestras de cordas árabes, pletóricas, de que não
gosto nada, que acho imensamente kitsch.
Mas não resisti à força daquela melodia. São imposições da própria música. Eu
próprio, com o alaúde, improviso de forma diferente nestas peças. Sinto-me
quase limitado por elas, como que a andar por um sítio que não conheço. Olhe:
aí tem outro paradoxo. Chega a ser angustiante!
Então responda-me a isto: a memória, para
que “Souvenance” remete, tem a ver com o passado ou é uma projeção para o
futuro?
Só
com o passado não terá, pois nós possuímos o infeliz condão de deixar o mundo
irreconhecível à nossa passagem. A ter a ver com o futuro… Só se for porque lhe
extrai algo: aquilo de nós, de mais humano, que desejamos conservar, talvez?
Não sei se é isso a esperança. Pelo menos devemo-nos deixar despertar para tal
possibilidade tanto quanto os povos devem saber despertar para a mudança.