29 de outubro de 2016

Charlie Haden – Liberation Music Orchestra “Time-Life (Song for the Whales and Other Beings)” (Impulse!, 2016)


Kate Bush, em entrevista à “Sounds”, já o lembrava: “As baleias dizem tudo o que há a dizer sobre movimento. Imensas, robustas, mexem-se de modo gracioso, inteligente e flexível. Pesam toneladas e parecem capazes de flutuar. Representam exatamente o que se costuma dizer acerca da comunicação. A sua agilidade é tão pura quanto o som que produzem, um chamamento qualquer, tão solitário, tão triste.” Falava a propósito da sua ‘Moving’ (1978), que, como introdução, incluía o canto das baleias tal como captado por Frank Watlington e Roger e Katharine Payne. Também Carl Sagan, na elaboração dos discos de ouro da Voyager, havia inserido uma dessas fitas nos fonogramas destinados a espécies alienígenas. E em janeiro de 1979 era a vez da “National Geographic” oferecer um flexi disc que continha os mesmíssimos sons. Por seu turno, Charlie Haden (1937-2014), no LP do mesmo ano do conjunto que coliderava com Don Cherry, Dewey Redman e Ed Blackwell, assinava ‘Song for the Whales’ e dizia: “Esta música foi escrita com o devido respeito por todas as espécies de baleias, na esperança que venham a ser protegidas pelo direito internacional.” Na respetiva intro e outro, com o arco, levava para o contrabaixo os seus padrões vocais, como uma jeremiada. 

A 15 de agosto de 2011, no festival Jazz Middelheim, em Antuérpia, teve, por fim, oportunidade de voltar ao tema. Apresentava-se com uma versão renovada da Liberation Music Orchestra, a banda que havia formado em 1969 como uma “reação às injustiças que via sucederem-se pelo mundo, mais especificamente à Guerra do Vietname e do Camboja”, conforme lembra Ruth Cameron Haden, sua viúva. Com orquestração e direção de orquestra de Carla Bley, dá por terminada ‘Song for the Whales’ e chega-se ao microfone: “A baleia, aqui, representa todas as criaturas vivas. Tão preciosas, tão maravilhosas, tal como o universo, tal como o planeta, como vocês. Não o esqueçam. É nossa responsabilidade manter as coisas belas e admiráveis.” Fala lentamente e nota-se a sua dificuldade em engolir. Está a ser gravado pela rádio flamenga, a VRT. Nunca mais voltaria a tocar a canção. Agora, esse registo revela-se a espinha dorsal de um projeto que deixou em testamento: um álbum dedicado a causas ecológicas. Steve Swallow substitui-o no baixo, Bley dirige e instrumentistas como Tony Malaby, Chris Cheek, Curtis Fowlkes e Joseph Daley devolvem-lhe a palavra e despedem-se de si com um único desejo em mente: que o mundo permaneça o lugar com que o seu líder sonhava.

“Khmer Rouge Survivors: They Will Kill You, If You Cry” (Glitterbeat, 2016)



“Eles matam-te, se chorares”, conta Arn Chorn Pond, num depoimento incluído nas notas de apresentação deste CD, recordando o período em que foi recrutado à força pelo Khmer Vermelho. Era uma criança, nem ele sabe de quantos anos, e lembra-se de participar em espetáculos para animar as tropas. Mas até com isso aquela torrencial sucessão de decretos acabou. É que, de súbito, a expressão musical infringia os desígnios de um Pol Pot que, entre tantas outras, vinha de pronunciar no Camboja a interdição do intelectualismo, do profissionalismo, isto é, de qualquer atividade que exigisse algum grau de especialização, e, fundamentalmente, da manifestação de emoções que trouxessem à memória o passado. Ian Brennan, que em junho de 2015 gravou este “Khmer Rouge Survivors” em Phnom Penh, acrescenta agora que, a Pond, “trocaram a flauta por uma metralhadora e enviaram-no para a frente”, onde foi ensinado a odiar, a matar, a torturar e a enterrar no fundo de si mesmo a culpa, o remorso e a compaixão.

“Tinha nove anos e perdi tudo num piscar de olhos”, canta Thuch Savanj, nascido em 1965 e condenado a viver com marcas no corpo e na mente dos estilhaços da bomba que reclamou a vida à sua mãe. O tema chama-se ‘Jivit Rongkroh Proh Songkream’ (‘A Minha Vida Enquanto Vítima de Guerra’) e possui versos como estes: “Fui submetido a trabalhos forçados e obrigado a viver entre crianças que não conhecia”, “A minha tia, o meu pai e o meu avô foram assassinados, mortos à fome pelo Khmer Vermelho”, “Sentia tanta dor, como se uma montanha me tivesse caído em cima, mas já não sabia chorar”, “Estava em choque”. É acompanhado por um chapey dong veng (uma espécie de alaúde de braço longo tipicamente cambojano), num arranjo em que, ao invés de as pinçar, como de costume, a palheta é arrastada pela borda, corda acima, corda abaixo, de forma a reproduzir aquele tipo de sons que, num filme de terror, fazem no tampo do caixão as unhas de um enterrado vivo. Talvez seja exatamente assim que Savanj se sente.

Também Kong Nai podia citar o Carlos Drummond de “O Enterrado Vivo”, nomeadamente por aquele terceto do “Sempre no meu amor a noite rompe/ Sempre dentro de mim meu inimigo/ E sempre no meu sempre a mesma ausência”. Não será outro sentimento que leva esse que a varíola privou da visão, e a que chamam “Ray Charles do Camboja”, a cantar, aqui, ‘Kamara Rongkaam’ (‘Uma Nação em Luto’) ou ‘Boonchnam Kamtkosal’ (‘Começa Agora o Meu Pesar’). Um dos últimos mestres do chapey, e o mais popular compositor e intérprete incluído na compilação, Nai, de 70 anos, ganhou fama no tempo de Norodom Sihanouk e foi dos poucos músicos dessa era a sobreviver ao regime de Pol Pot (cf. “Don’t Think I’ve Forgotten: Cambodia’s Lost Rock And Roll”, documentário de John Pirozzi). Entre 1975 e 1979 era mais um entre milhões de prisioneiros nos campos da morte, alimentado a papas, por, em virtude da cegueira, não produzir o mesmo que outros detidos. Foi largado à sua sorte quando o exército vietnamita invadiu o país.

De certo modo, e porque “nenhum de nós ficará neste mundo”, diz, Brennan acaba sempre a lidar com fantasmas. Este ano editou um livro, “How Music Dies”, em parte consagrado à crónica das suas gravações de campo (Zomba Prison Project, Acholi Machon, Malawi Mouse Boys, Hanoi Masters, etc.), em que se lê: “Isto são gritos para o além. Telefonemas de emergência na forma de um audiograma. Se, no futuro, ao serem escutados, melhorarem a vida de alguém, terá tudo valido a pena.” Nunca tanto como agora.

22 de outubro de 2016

John Butcher & Stale Liavik Solberg “So Beautiful, It Starts To Rain” (Clean Feed, 2016)



Butcher grasna, grunhe, guincha, grita e gorjeia. Berra, brama, bale e buzina. Trina, trila e trissa. Acompanha-o Stale Solberg, percussionista norueguês que tanto quanto o britânico ao saxofone põe em cena um ecossistema mal se senta à bateria. Escutam-se peles, pratos e potes. Sinos, chapas e chocalhos. E perde-se a conta ao arsenal de baquetas de que dispõe, não obstante preferir com frequência a intimidade de roçar as pontas dos dedos húmidos pelas membranas da tarola ou do timbalão. Ouvindo-o, salta à memória o que Butcher dizia acerca de bateristas, numa entrevista publicada há 15 anos na “Paris Transatlantic”: “Evitei-os durante muito tempo. Não me interessava trabalhar com aquele tipo de propulsão. Toquei com o Paul Lovens, que operava de um modo mais espetral, mas foi o John Stevens que me levou a ter novamente interesse pela bateria. Sem a condicionar, ele dava um belíssimo impulso à música, deixando-a muito transparente. E isso deve-se ao instrumento que usava, em que era tudo miniaturizado, sem grande sustentação.” Claro que, desde então, Butcher encontrou o que procurava. E há discos que o comprovam, como “Concentric” (com Paal Nilssen-Love) ou “Daylight” (com Mark Sanders). Registos, como este, em que a arte triunfa sempre sobre a técnica. Um considerando, aliás, em que se dá pelo seu moralismo. Num ensaio incluído numa antologia dedicada à improvisação (“Aspekte der Freien Improvisation in der Musik”, 2011), escreveu assim: “De certeza que não teríamos a ousadia de descrever como ‘técnicas estendidas’ o recurso ao feedback de Jimi Hendrix, os ataques percussivos de Son House com o slide ou aquele oitavar que o volume de sopro excedentário de Albert Ayler permitia.” Não… O que não impede que se caracterize a manipulação das frequências fundamentais dos tons que Butcher faz ao saxofone, por exemplo, exatamente dessa maneira. Tudo, porque – e é aí que residirá a beleza a que este título alude – insiste em fazer música que ultrapassa a própria imaginação.

“Every Song Has Its End: Sonic Dispatches from Traditional Mali” (Glitterbeat, 2016)



Entre dezenas de páginas, sob a égide do Gabinete para Assuntos Culturais e Educacionais, e subordinada à epígrafe “Documentação de tradições musicais e expressões artísticas ameaçadas no Mali”, a génese desta extraordinária antologia encontra-se no relatório de 2011-12 do Fundo Embaixador para preservação cultural do Departamento de Estado norte-americano: “Um período de rápida urbanização e convulsão social sem precedentes tem contribuído para o desgaste contínuo e eventual abandono de tradições musicais no Mali que, no passado, desempenharam um papel crucial no fomento de laços entre grupos tribais. Este projeto inclui o registo de instrumentos de sopro, cordas e percussão tradicionais, assim como do património intangível associado aos mesmos.” Da subvenção beneficiou Paul Chandler, proprietário dos estúdios de gravação Studio Mali e professor de música na Escola Americana de Bamako, que, de pronto, partiu para o terreno. Deste aí, em i4africa.org, partilhou um trabalho que se provou deslumbrante e dilacerante em partes iguais, como o Mali e o mundo. Num vídeo, Afel Bocoum diz: “Sei que, como a vida, também cada canção tem o seu fim”. Noutro, Thimsi Bocoum toca um antepassado do violino e ouve-se: “Isto faz-nos sentir noutro sítio, capazes de tudo. Até de resistir a essa gente.” A voz refere-se aos agentes do Ansar Dine que, em meados de 2012, no norte do país, tinham proibido qualquer tipo de manifestação musical. Em Gao, dedilhando o único ngoni que nessa altura conseguiu esconder, Yehia Samaké conta como os jiadistas destruíam instrumentos. Vê-se ainda Ibrahim Touré, o último intérprete do bolon (“antigamente, para me ouvirem tocar”, diz, “tinham de derramar sangue sobre o bolon”), ou Sidiki Coulibaly, com este desabafo: “Os jovens não querem aprender a tocar o simbi. Agora, eu, mesmo que me digam que vou parar ao inferno por tocá-lo, não posso parar. Porque se não o puder tocar é sinal que a minha vida na terra já se transformou num inferno.”. E se calhar já.

15 de outubro de 2016

Andrew Cyrille Quartet “The Declaration of Musical Independence” (ECM, 2016)



Da Declaração da Independência dos Estados Unidos da América inferem, possivelmente, que todos os homens são dotados de “certos direitos inalienáveis”. Isso e, claro, a premissa de que são criados iguais. Pois a verdade é que em nenhum momento deste “The Declaration of Musical Independence” se desune a energia ou dissipa a individualidade de que o quarteto de Andrew Cyrille (bateria e percussão), Bill Frisell (guitarra elétrica), Richard Teitelbaum (sintetizador e piano) e Ben Street (contrabaixo) se compõe. Aliás, escutam-se os temas do CD e vem à memória uma conversa entre Cyrille e o crítico Ted Panken, reproduzida nas notas de apresentação de um par de álbuns seus com Anthony Braxton (“Duo Palindrome”, 2004), em que o músico dizia: “É difícil explicar por palavras. Mas às vezes é possível fazermos analogias para justificar aquilo que pensamos e sentimos. Então vêm-nos à cabeça conceitos como ‘tempo líquido’ [para explicar a pulsação básica subjacente ao que fazemos]. Para mim, ‘tempo líquido’ teria a ver com água, no sentido em que detetas movimento, mas nenhuma divisão. Olha o oceano: não vês movimento? Não vês ritmo? Mas está alguma coisa separada?” É uma ideia crucial para se entender aquilo que de mais significativo tem realizado ao longo das últimas seis décadas. E, no fundo, uma aptidão que cedo fez conhecer – basta lembrar aquela milagrosa sessão com Walt Dickerson (“To My Queen”, 1962) e verificar como a influência que exercia sobre a cadência do conjunto era capaz de sugerir a atração das ondas do mar pela lua. Esse fluxo e refluxo nota-se de novo aqui, numa música que recorda ainda o tempo que Cyrille passou a tocar com bailarinos, embora, no caso, num contexto em que as suas coreografias se vissem subitamente afetadas pela ausência de gravidade. Trata-se de uma música mais espaçosa do que atmosférica, mais ilusória que concreta e, como um dia disse Cecil Taylor acerca da ação de Cyrille, mais mágica que lógica. É uma música que só quer depender de si.