Estamos
em 1994. No Brasil, como de costume, passa-se da disforia à euforia enquanto o
diabo esfrega um olho, e vice-versa: da morte de Ayrton em Ímola ao tetra nos
EUA, da eleição de Fernando Henrique Cardoso à absolvição de Fernando Collor de
Mello. Pelas ruas fala-se muito de PC Farias mas mais ainda da cuequita – ou da
falta dela – de Lilian Ramos, fotografada de pé na Marquês de Sapucaí ao lado
do presidente do país, Itamar Franco, a ver as escolas de samba passar. Foi
tóxico – e, nem por acaso, o enredo vencedor desse ano, da Imperatriz, era
consagrado a Catarina de Médicis, produtora de beladona. No Rio continua-se a
ir à praia, claro, conquanto se receiem as alforrecas na água e os arrastões no
areal. Já nas lojas de discos o cenário não difere muito daquele descrito por
Ruy Castro em “A Onda que se Ergueu no Mar”: “Abrindo espaço com os cotovelos,
três ou quatro japoneses ou europeus folheiam ardentemente as gavetas de (…) usados.
Não são simples colecionadores. São gente da indústria (…), tentando salvar o
material gráfico dos LPs brasileiros que vão lançar em CD nos seus países.
Depois de soltar tudo o que lhes parecia essencial, partiram para (…) coisas
disputadas como o instrumental ‘À Vontade Mesmo’, do trombonista Raul de Souza,
ou o quase vaporoso (…) ‘Vagamente’, de Wanda Sá.”
Dois
desses europeus seriam com certeza Stuart Baker e Joe Davis, na cidade para uma
sessão de gravação com músicos locais que, coincidência das coincidências, incluía
Raul de Souza e Wanda Sá. Vinham de Inglaterra, onde haviam fundado um par de
editoras dispostas a surfar o que nos materiais de promoção desta reedição se
apelida de “primeira grande vaga de interesse por música brasileira na Londres
dos anos 90”. Primeira? Dificilmente. Mas percebe-se a intenção – afinal, e basta
consultar o recenseamento geral da população, nem só por motivos económicos se explica
que o número de brasileiros a residir no Reino Unido tenha quintuplicado entre
1991 e 2011. Havia um interesse enorme em excarcerar a cultura da diáspora, em
descobrir as raízes concretas e materiais de uma geração que, para citar outro
LP de 1994, se revia no credo dos United Future Organization: “No Sound is Too
Taboo”. Por isso, não seria nada estranho que surgissem no mercado britânico umas
compilações chamadas “London Jazz Classics” (na Soul Jazz, de Baker) prontas a incluir
nos seus obscuros alinhamentos nomes tão pouco autóctones quanto os de Airto
Moreira, Sivuca, Azymuth, Emílio Santiago e Antônio Adolfo. Escutando este
“Brasil”, imagina-se Baker no avião, a caminho do hemisfério sul, tirando apontamentos
para o disco que não chegaria bem a produzir, embora tenha andado lá perto. Davis,
por sua vez, aproveitou a viagem para assegurar a edição na sua Far Out de um álbum
aparentado com este (“Friends From Rio” – em triangulação com ambos, nesse
mesmo ano, mas virado para o passado, estaria “Brazilica!”, na Talkin’ Loud) e
fundamentalmente para visitar os arquivos do casal Tutty e Joyce Moreno e de lá
sair com os seminais “Tocando Sentindo Suando” e “Tardes Cariocas”, originais
de 1981 e 1983.
Aliás,
na base deste “Brasil” está precisamente a banda de Joyce circa “Ilha Brasil”: a dos experimentadíssimos Tutty, Sizão
Machado, Teco Cardoso e Mozar Terra, não obstante a voz da cantora só despertar
em ‘Mágica’. Também Sivuca aparece por aqui numa faixa única – ainda assim, adivinha-se
a emoção de Baker em ter à sua frente, na cabine, alguém que só conhecia de
discos dos anos 60 e 70. Wanda Sá faz dois etéreos duetos com Célia Vaz –
tinham acabado de gravar o extraordinariamente anacrónico “Brasileiras” em
conjunto, na CID – e Raul de Souza improvisa em ‘Berimbau’ e ‘Batucada Nº 2’. Como
a editora reconhece, “a peça final neste puzzle
foi a adição do percussionista ‘Pirulito’”. Nascido Luis Fernando Mattos de
Oliveira, de facto, “Pirulito”, um veterano dos palcos ao lado de Ivan Lins, Leny
Andrade, Alcione, Djavan ou Beth Carvalho, transpunha para o estúdio a energia
vital do Carnaval sozinho, munido de atabaque, afoxê, agogô, ganzá, clave,
caixa, conga, repique, repinique, xique-xique, reco-reco, tantã, tamborim e
pandeiro – parece poesia concreta. Em 1994, “Brasil” não capta a realidade da música
brasileira – para isso mais valia comprar as trilhas sonoras de “Fera Ferida” e
“Tropicaliente” ou licenciar para o mercado internacional as novidades de Chico
Science e Mundo Livre S/A –, mas capta o realismo mágico da música brasileira, pelo
menos tanto quanto “Pirulito”, que morreu em junho de 2017, o concebia. E é à
sua memória que esta reedição deveria ter sido dedicada.