Ao
fim de tantos anos, persiste no discurso crítico que acompanha a biografia de
Elis Regina uma falácia que desclassifica os seus quatro primeiros discos (“Viva
a Brotolândia”, “Poema de Amor”, “Ellis Regina” e “O Bem do Amor”),
identificando-se nesse material gravado entre 61 e 63 uma prevalência de
interesses editoriais de mercado face à expressão criativa da intérprete. Já em
2012, quando se cumprem os 30 anos sobre a sua morte, por entre uma série de
iniciativas de restauração e reavaliação do seu catálogo – do espectáculo
“Redescobrir”, em sua homenagem organizado por Maria Rita, sua filha, ao
encaixotamento de 24 CDs em “Elis Anos 60” e “Elis Anos 70” – persiste-se em ignorar
essa sua crucial produção. No fundo, mais do que ao anacrónico posicionamento do
conservador quarteto de LPs no dealbar de uma era de tanto optimismo, talvez
tal se deva à sua inconsequência artística e ao falhanço comercial – a juvenil
Elis, embora com invulgar sofisticação e temperança, cantava no tempo da bossa
nova como uma menina perdida em terra de ninguém, entre o dengoso romantismo de
Ângela Maria e atrevidas adaptações do rock’n’roll ao jeito de Celly Campello. Por
isso se impunha uma mudança de ares: partindo de Porto Alegre com o pai, Elis, com
19 anos acabados de fazer, chegou ao Rio de Janeiro em março de 64 e foi bater
à porta da Philips.
Em
poucos meses, graças a uma sucessão de factos que só o seu imenso magnetismo
justifica, passa da condição de anónima à de vedeta. Impactantes aparições em concertos
preparados para transmissão televisiva culminam, em 65, no seu triunfo (com ‘Arrastão’,
de Edu Lobo e Vinicius de Moraes) no inaugural “Festival Nacional de Música
Popular Brasileira”, da TV Excelsior, e no convite para encabeçar o cartaz do
Teatro Paramount, em São
Paulo, ao lado de Jair Rodrigues; o disco daí resultante,
“Dois na Bossa”, vende um milhão de exemplares e é transposto pela TV Record
para a sua grelha no semanal “O Fino da Bossa”. No meio de tudo isto era inevitável
que “Samba – Eu Canto Assim” saísse afectado por aquilo que o poeta Augusto de
Campos qualificava como “estardalhaço patológico”. De facto, longe da
delicadeza dos registos precedentes, este primeiro LP adulto da cantora testemunha
o frenesi com que se empacotou a bossa para a sociedade de consumo numa
participativa orgia alimentada a vocalizações expressionistas, coreografias aparatosas
(Elis ganhou no período as alcunhas de ‘Pimentinha’, pelo temperamento, e de ‘Hélice’
Regina, pelas braçadas em palco) e demagógicos dispositivos carnavalescos.
Mesmo marcando o encontro da sua voz com as canções de Edu Lobo, Francis Hime,
Carlos Lyra ou Marcos Valle, moderação e subtileza, aqui, só no acompanhamento
do Rio 65 Trio, de Dom Salvador.
Com
a fama cimentou-se um posicionamento fracturante: Elis era contra Nara Leão, contra
a bossa, a Jovem Guarda, o tropicalismo, e depois tudo abraçava. “Elis”, de 66,
com o Bossa Jazz Trio, revela-a mais madura, cantando Caetano, Chico, Milton ou
Gil, e “Elis Especial”, de 68, mais sofrida, ainda que dedicada a Jobim pela
primeira vez. Sucedem-se digressões pelas capitais europeias e programas para
as televisões francesa, inglesa, belga, alemã, holandesa. Em 69, passando pela
Suécia, grava “Aquarela do Brasil”, uma anémica reunião com Toots Thielemans, e
em Londres os executivos da sua editora acham boa ideia juntar o seu grupo (liderado
por Roberto Menescal) às orquestrações de Peter Knight (compositor com créditos
secundários em discos de Moody Blues ou Scott Walker). O repertório deste “… In
London”, interpretado de forma algo histriónica, repete o de “Aquarela…” e o
que, com outra desenvoltura e maior domínio da distinta síncope afrobrasileira nos
arranjos de Erlon Chaves, lançaria em “Elis, Como & Porquê”. Mas todos os registos
do ano revelam as debilidades de uma fórmula novamente em nenhures, seduzida
pelos apelos da juventude mas simultaneamente saudosista, agora incapaz de
representar um país calado pelos militares. Seria necessário mais um par de
álbuns e uma descida aos infernos para que, com as suas obras-primas da década
de 70, encontrasse finalmente o Brasil a sua cantora maior, que logo tanta
falta lhe faria.