26 de julho de 2014

Viver e morrer com a África Negra: entrevista a Leonídio Barros e João Seria



Reunidos dois dos seus membros mais antigos, os são-tomenses África Negra regressam a Portugal pela primeira vez desde os anos 80. Dia 31 tocam no B.leza, em Lisboa

É verdade o que se costuma dizer acerca da primeira vez. Andamos pelo Centro Comercial D’Amora, em Paivas, entregues à imaginação e à lembrança entre lojas decoradas com cartazes de agências imobiliárias, e não se vê vivalma. É noite de jogo, e, dias depois, brincamos: “Se um dia te perguntarem onde é que estavas quando o Brasil perdeu 7 a 1 com a Alemanha já tens resposta”. Sentamo-nos a uma mesa, como arqueólogos à beira de um sarcófago, e o próprio pó parece mediúnico. Recorda Leonídio Barros: “Era jovem, com uns 18 anos. E, lá em Pantufo, apareceram uns tipos a perguntar se queria entrar em África Negra. Só que eu tinha medo da reação do meu pai, e, por isso, fui às escondidas, seguindo-os para cima e para baixo, observando. Um dia havia um concerto na roça de São João dos Angolares e o viola-ritmo adoeceu, com paludismo. Olharam para mim e pensei: ‘E agora? Estou lixado’. Não tinha ensaiado, não sabia fazer de ritmista, nem nunca tinha tocado guitarra elétrica. Mas conhecia as canções e comecei a acompanhar o Emídio, fazendo solos por cima dos dele. As pessoas gostaram, pegaram-me em ombros e diziam: ‘Este miúdo toca muito!’. Nessa noite apanhei a primeira bebedeira da minha vida”.

A cena transporta-nos para a ilha de São Tomé de meados da década de 70, numa nação à cata de oportunidades. À distância, é fácil situar a África Negra entre as luminárias que indicaram um caminho na encruzilhada da independência. A par dos Leoninos e dos Untués, dos Quibanzas e dos Leonenses ou dos conjuntos Mindelo e Sangazuza, a banda foi responsável pela criação de uma narrativa cultural que se provou única no contexto lusófono. Mas, nessa altura, só se tentava fazer pela vida. Prossegue Leonídio: “Fazíamos algum dinheiro. E até houve um momento em que alguns colegas viviam da banda. Eu era professor primário, uns tinham o seu cultivo, outros trabalhavam na construção civil, um na Secretaria da Educação, outro – que já faleceu – era contabilista numa confeção de camisas, e outro, ainda, era pescador. Chamava-se Dulce e, nunca me vou esquecer, morreu a 31 de dezembro de 1982. Mas naqueles anos a África Negra era um luxo. E muito graças aos angolanos. Primeiro, porque havia muitos soldados das FAPLA estacionados em São Tomé que nos adoravam. Depois, porque recebíamos convites de Benguela, Luanda ou Cabinda. Andávamos escoltados: iam os instrumentos num camião, nós num autocarro e três ou quatro colunas militares à frente e atrás. Pagavam-nos as viagens, a alimentação e o hotel, mas, no fim, o Sr. Mateus dava-nos uns trocos e dizia: ‘Vai comprar um par de calças ou um biquíni para a tua mulher ou um brinquedo para o teu filho’. Hoje teria de ser diferente, mas, na época, nem ligávamos. Corríamos atrás da fama e pensávamos que ia durar para sempre”.

No auge da popularidade, promovendo uma versão moderna da rumba são-tomense, em que enxertavam os ritmos do seu samba, do matacumbi, do socopé, do puita, do puxa ou do ússua e as modas que chegavam de Abijão, Libreville, Lagos ou Kinshasa, visitaram Portugal. Convidados por compatriotas aqui imigrados, entre 1980 e 1981, atuaram por Moscavide, Cruz de Pau ou Corroios. “Até fomos a estúdio”, adianta Leonídio, já um dos principais compositores da banda: “Mas foi uma complicação. Fizemos muitas cassetes, saiam discos, temos registos na Rádio Nacional. Sempre me pareceu que toda a gente fez negócio com essas gravações. São tantas histórias, tantas coisas que não correram bem. Como quando fomos para Cabo Verde, em 1987: partimos onze, voltámos quatro. E nunca mais foi o mesmo. Aquele som, aquela música, perdeu-se. Um ainda lá está. Outros estão em França. O Sérgio e o Dió estão em Portugal. Eu vim em 1999. Tenho trabalhado na construção civil, e toquei nos TR ou nos Dombó, e agora estou nos M.V. 4, com antigos membros de Sangazuza e Untués. É engraçada esta reunião”, conclui: “Eu e o João Seria somos como o Coluna e o Eusébio da África Negra, e os outros que vêm com ele são de outras gerações. Prova que a África Negra resiste… Que ainda está viva”.

É com equipamento dos M.V. 4 que, no Bar do Roque, na Cova da Moura, esta renovada África Negra ensaia. Acabado de chegar, e a dias de partir para Sines, o cantor João Seria faz as apresentações: “Olha, ali, o meu compadre Albertino. Este miúdo, grande cantor, o Elizio, um dia há de me substituir. O Emídio Vaz não pôde vir, mas está aí o Nando. E o Coxinho e o Adriano.” Move-se como quem não se perturba pela gravidade. Magro, de gestos teatrais, levípede, possui a concentração de um ilusionista. “Você já viu este homem a dançar?”, pergunta Filipe Lima, atual manager da banda, segurança e motorista no gabinete do primeiro-ministro de São Tomé: “É que, se nunca viu, vai querer ver. É como o caçula dele!”. João aproveita a deixa: “Dança muito… E só tem 9 anos. Mas já não faço mais filhos. Fica bem assim. Eram 24, morreram 6, sobraram 18. Dá até vergonha. Agora já estou a 2 dos 70 anos. Mas não tenho medo. Nada me mete medo: enfrentei os Kassav’ em Luanda, andei pela Guiné Equatorial, pelo Gabão, pelo Congo, sempre com a bandeira da África Negra. Com o Emídio, sou o membro mais antigo. Já não estão entre nós o Horácio, o Emílio Pontes, o Sr. Mateus Ferreira, que era o dono do talho em que alguns de nós trabalhavam. Convidaram-me para o conjunto em 1975, estava eu de saída dos Sangazuza. Lembro-me de quando encontrámos o Leonídio. Quando ele foi para a tropa, fui falar com o comandante e disse: ‘Estou a precisar desse puto, meu irmão. Sem ele acaba a África Negra’. Ele respondeu: ‘Leva-o. Tocam sábado, domingo e segunda e na terça entregam-mo aqui no quartel’. Que tempos! Fizemos grandes canções, juntos. Só nos separámos em Cabo Verde. Tocámos no Fogo, na Praia, em Santo-Antão, em São Nicolau, em todo o lado e, no Sal, deu-se aquele contratempo. Sabe, um jovem tem sempre vontade de saltar por aqui e por acolá. Ficámos sete para trás porque tínhamos um destino: partir para a América. Nunca fomos. Depois ainda vivi em Angola, onde mais tarde cantei para o Yuri da Cunha. Ensinei viola num quartel. Um dia, disseram-me: ‘Vai para o mato animar as tropas; damos-te uma arma’. Respondi logo: ‘Eu não vou trabalhar com arma, amigo, eu não nasci para arma, a viola é que é a arma’. Com a África Negra tocámos em zonas cheias de guerrilheiros. Mas a gente não tinha medo. Eu dizia: ‘Viver ou morrer é igual ao litro, meus irmãos: o que interessa é atuar’. E é para isso que cá estamos.

19 de julho de 2014

Charlie Haden (1937-2014)



Faleceu no passado dia 11 de julho, aos 76 anos, e após doença prolongada, o músico norte-americano Charlie Haden. Assim o divulgou a sua viúva, Ruth Cameron, e anunciou a ECM, editora que acaba de colocar à venda “Last Dance”, disco de duetos entre Keith Jarrett e o contrabaixista e compositor agora desaparecido. Para os anais, enquanto líder, em coletivos de geometria mais ou menos variável marcados pelos humores do associativismo ou como instrumentista convidado, fica uma vastíssima discografia, não exclusiva ao idioma do jazz, que possui como primeiro ponto alto os incensados e controversos álbuns gravados com o quarteto de Ornette Coleman entre 1959 e 1961 e, possivelmente, como segundo, a sucessão de LP registados entre finais de 60 e meados de 70 com o ‘quarteto americano’ de Jarrett. Mas para a História fica, também, a estreita relação de Haden com o Portugal de Abril. Em “Closeness”, de 1976, o seu mais notoriamente inaugural disco a solo, estreia ‘For a Free Portugal’. O tema goza de características surreais, com Paul Motian em idiofones de tribalismo mágico e uma colagem do hino do MPLA com a voz do comandante das FAPLA José Mendes de Carvalho e uma gravação da célebre interjeição de Haden realizada a 20 de novembro de 1971 no 1ª Festival Internacional de Jazz de Cascais: “A próxima canção é dedicada aos movimentos de libertação do povo de Moçambique, Guiné e Angola”. Como se sabe, a ousadia valeu-lhe a prisão pela PIDE, um breve interrogatório, e, dois dias mais tarde, graças aos ofícios do adido cultural da embaixada norte-americana em Lisboa, uma escolta até ao aeroporto. Em 1978 regressaria para atuar na “Festa do Avante!”. Em 1983 inclui uma versão de ‘Grândola Vila Morena’ – dir-se-ia passada na República de Weimar – no álbum “The Ballad of the Fallen”, que tem Carla Bley como coautora. Em 1990 atua com Carlos Paredes no Coliseu dos Recreios e juntos editam “Dialogues”, um disco sobre os limites da comunicação. Charlie Haden foi pela liberdade incondicional.

Maria João Pires aos 70



Simplesmente Maria

Maria João Pires completa 70 anos na próxima quarta-feira, dia 23 de julho, e, ao que tudo indica, mantém-se longe de Portugal, numa sucessão de exílios de difícil superação. Não obstante, acabadas de chegar às lojas, novas edições permitem colmatar a distância entre o país e a sua mais importante pianista de sempre

O folhetim que no início da década de 70 amarrava uma nação ao éter não vem propriamente ao caso. A não ser, claro, que o assunto seja estritamente o do provincianismo ou, se assim o entenderem, que se enlace a história da analfabeta Maria, que, partindo do campo, ia servir para a cidade grande, nessoutra da sobredotada Maria, que, na mesma altura, andava à conquista do mundo longe da periférica capital em que nasceu. Por tratarem ambas da dor do exílio, talvez. Ou, quiçá, e num plano muito simbólico, quase supersticiosamente mariano, por ter a segunda procurado redimir a primeira. Afinal, não foram poucas as vezes que João Pires se norteou pelo sempiterno anseio do ‘regresso à terra’. Ainda há uns anos, ao norte-americano “ArtsJournal”, dizia: “Tenho uma fortíssima relação com a natureza; com o ar, o vento, o sol. Na cidade sinto-me sempre com sede.” Na imprensa portuguesa, com a típica condescendência com que se toleram as bucólicas extravagâncias das elites, era habitual, ao longo dos anos, surgirem crónicas dessa vida elementar: Maria João Pires a conduzir um trator e a cuidar de uma horta; a ordenhar uma vaca e a dar de comer às galinhas; a viver numa autocaravana. Em 1982 contava ao Expresso a sua experiência num ermo alentejano: “Comprámos um motor para puxar a água da fonte, acendíamos a lareira quando estava muito frio. As miúdas iam à escola de bicicleta, eu lavava a roupa, esfregava a casa e cozinhava”. De certa forma, o Centro de Estudos para as Artes de Belgais foi o culminar desse processo. Daí, do distrito de Castelo Branco, perguntava ao espanhol “El País”: “Porque se põe no seguro as mãos de um pianista e não as de um agricultor?”. Também o Expresso publicou, há uma dúzia de anos, um amplo retrato dessa quinta que Pires converteu num holístico cenário de pedagogia experimental e inclusiva, e que parecia combinar elementos de uma colmeia, de uma comuna, de um convento ou de um complexo habitacional de uma seita, antes de ter fechado portas acrimoniosamente.

O que o Estado português não garantiu encontrou a pianista em Salvador da Baía, no Brasil, para onde partiu quando se cansou em definitivo de um país que a desilude desde que nasceu – afirmou-o, há mais de 30 anos, precisamente ao Expresso. E é, presumivelmente, o que desenvolve, hoje, nos arredores de Bruxelas, ao abrigo da Capela Musical Rainha Isabel, instituição de ensino musical em que é docente, através dos projetos Partitura e Equinox: um, dedicado à transmissão do conhecimento em recitais partilhados com solistas prometedores, outro, consagrado à prática coral e a crianças desfavorecidas. Na sua teoria da educação, ela, que crê que a “a arte não se ensina”, enfatiza “a parte emocional, empírica, o que é do domínio do inexplicável”. Guia-a um sobressalto de lógica que sintetizou à francesa “Classica”: “Especialistas do mundo inteiro interrogam-se: ‘Que planeta vamos deixar aos nossos filhos?’ Pois, a mim, preocupa-me mais o seguinte: que filhos vamos deixar ao nosso planeta?” Nesta matéria, a sua candura é apenas superada pela honestidade. 
E este novo registo com o maestro Daniel Harding prova que efetivamente prefere a cooperação à competição. Num programa votado a Beethoven, irradia felicidade ao tocar a cadência do Allegro con brio do “Concerto para Piano Nº 3 em Dó menor”, está envolta em lençóis de seda no Largo e, de seguida, no Rondo-Allegro, salta da cave para o sótão do teclado e atinge gloriosa e incredulamente a meta – Rosa Mota, em Seul, esticando os braços para o ar com os dedos em V. Já no “Concerto para Piano Nº 4 em Sol maior” parteja um Allegro moderato com a estrutura óssea de um recém-nascido e sugere um Andante con moto como só um filósofo o poderia fazer e analisa o Rondo-Vivace ao microscópio. Na apresentação fala do “culto da personalidade” e do modo em que o conceito atrapalha a capacidade de “trazer a lume uma simplicidade primitiva, presente em todos nós”, e do objetivo em operar um “milagre simples: abrir um canal até à nascente da qual toda a música emana”.
Não se pode dizer que tenha feito outra coisa ao longo dos anos, embora, somando as gravações da Deutsche Grammophon às da Erato (estas, recentemente compiladas em “The Complete Erato Recordings”), se detete algo que a conclusão do contrato com a chancela alemã, aliada à estreia pela Onyx, indicia poder ter chegado ao fim: a autofágica seleção de repertório. Seja como for, para iniciados, revela-se indispensável a antologia “Complete Solo Recordings”, na qual se reúnem discos lançados entre 1989 e 2013. Aqui está o seu hagiográfico Schubert, cercado de murmúrios, polvilhado de feitiços, um escudo para manter à distância o mundo hostil: no “Improviso em Si bemol maior”, a princípio, lembra a menina que se aproxima de uma poça com receio e curiosidade, e logo depois é como se acompanhasse o golfinho que tem tatuado no pulso direito aos mortais numa piscina. Está o Bach, da “Partita Nº 1”, que toca como quem invoca vidas passadas, ou da “Suíte Inglesa Nº 3”, repleta de espelhos, algo baça e mecânica, uma mulher de meia-idade a jogar Mahjong. E o Beethoven da sonata ‘Ao Luar’, em que as mãos são faróis a rasgar a noite. Ou um Schumann, mais próximo do pensamento do que da ação, do espírito do que da carne, tímido até perante as suas notas. Está o Chopin, da “Berceuse em Ré bemol maior”, cintilante como a purpurina metálica das estrelas num mar de agosto, dos “Noturnos”, do segundo Prelúdio, que se interpreta a olhar por cima do ombro – e o proto-minimalismo do terceiro e a proto-bossa nova do quarto e o vento a lutar com Buster Keaton do 12º - e o das “Mazurcas”, que tempera com mão de cozinheira, e o das “Valsas” das professoras de balé. Está, claro, o eutésico Mozart, da integral de sonatas, de sorrisos e suspiros, com João Pires a recordar a cada compasso todos os metros de viagens que fez enquanto menino-prodígio: as vistas panorâmicas, os segredos a cada curva, os enjoos, as miragens, as saudades. Cada uma que termina é como uma porta a bater com a corrente de ar na outra ponta da casa.

No ano passado, à revista “Pianiste”, declarava que “o comércio nada tem a ver com a arte”, e que receava que os artistas que tal não compreendiam acabassem por “perder a alma”. Em 1997, ao “Libération”, reconhecia ter assinado pela Deutsche Grammophon “porque precisava do dinheiro” que lhe permitisse oferecer às filhas “algo mais que uma vida no campo”. Em 1986, anunciava ao Expresso: “No momento em que sentisse que estava metida num comércio, vinha-me embora”. Foi tudo o que quis e muito do que não quis, foi mantendo os ideais e perdendo uma alma que tentou repetidamente reencontrar. Partiu e talvez regresse, um dia. Por acaso, chama-se simplesmente Maria.


Maria João Pires “Complete Solo Recordings” (20 CD Deutsche Grammophon, 2014)

Beethoven: Piano Concertos 3 & 4 - Maria João Pires (p), Swedish Radio Symphony Orchestra, Daniel Harding (d) (Onyx, 2014)