Reunidos
dois dos seus membros mais antigos, os são-tomenses África Negra regressam a
Portugal pela primeira vez desde os anos 80. Dia 31 tocam no B.leza, em Lisboa
É
verdade o que se costuma dizer acerca da primeira vez. Andamos pelo Centro
Comercial D’Amora, em Paivas, entregues à imaginação e à lembrança entre lojas
decoradas com cartazes de agências imobiliárias, e não se vê vivalma. É noite
de jogo, e, dias depois, brincamos: “Se um dia te perguntarem onde é que estavas
quando o Brasil perdeu 7 a 1 com a Alemanha já tens resposta”. Sentamo-nos a
uma mesa, como arqueólogos à beira de um sarcófago, e o próprio pó parece mediúnico.
Recorda Leonídio Barros: “Era jovem, com uns 18 anos. E, lá em Pantufo,
apareceram uns tipos a perguntar se queria entrar em África Negra. Só que eu
tinha medo da reação do meu pai, e, por isso, fui às escondidas, seguindo-os para
cima e para baixo, observando. Um dia havia um concerto na roça de São João dos
Angolares e o viola-ritmo adoeceu, com paludismo. Olharam para mim e pensei: ‘E
agora? Estou lixado’. Não tinha ensaiado, não sabia fazer de ritmista, nem
nunca tinha tocado guitarra elétrica. Mas conhecia as canções e comecei a
acompanhar o Emídio, fazendo solos por cima dos dele. As pessoas gostaram, pegaram-me
em ombros e diziam: ‘Este miúdo toca muito!’. Nessa noite apanhei a primeira
bebedeira da minha vida”.
A
cena transporta-nos para a ilha de São Tomé de meados da década de 70, numa
nação à cata de oportunidades. À distância, é fácil situar a África Negra entre
as luminárias que indicaram um caminho na encruzilhada da independência. A par
dos Leoninos e dos Untués, dos Quibanzas e dos Leonenses ou dos conjuntos
Mindelo e Sangazuza, a banda foi responsável pela criação de uma narrativa
cultural que se provou única no contexto lusófono. Mas, nessa altura, só se
tentava fazer pela vida. Prossegue Leonídio: “Fazíamos algum dinheiro. E até houve
um momento em que alguns colegas viviam da banda. Eu era professor primário,
uns tinham o seu cultivo, outros trabalhavam na construção civil, um na
Secretaria da Educação, outro – que já faleceu – era contabilista numa confeção
de camisas, e outro, ainda, era pescador. Chamava-se Dulce e, nunca me vou esquecer,
morreu a 31 de dezembro de 1982. Mas naqueles anos a África Negra era um luxo. E
muito graças aos angolanos. Primeiro, porque havia muitos soldados das FAPLA
estacionados em São Tomé que nos adoravam. Depois, porque recebíamos convites
de Benguela, Luanda ou Cabinda. Andávamos escoltados: iam os instrumentos num
camião, nós num autocarro e três ou quatro colunas militares à frente e atrás.
Pagavam-nos as viagens, a alimentação e o hotel, mas, no fim, o Sr. Mateus dava-nos
uns trocos e dizia: ‘Vai comprar um par de calças ou um biquíni para a tua
mulher ou um brinquedo para o teu filho’. Hoje teria de ser diferente, mas, na
época, nem ligávamos. Corríamos atrás da fama e pensávamos que ia durar para
sempre”.
No
auge da popularidade, promovendo uma versão moderna da rumba são-tomense, em
que enxertavam os ritmos do seu samba, do matacumbi, do socopé, do puita, do
puxa ou do ússua e as modas que chegavam de Abijão, Libreville, Lagos ou Kinshasa,
visitaram Portugal. Convidados por compatriotas aqui imigrados, entre 1980 e
1981, atuaram por Moscavide, Cruz de Pau ou Corroios. “Até fomos a estúdio”,
adianta Leonídio, já um dos principais compositores da banda: “Mas foi uma
complicação. Fizemos muitas cassetes, saiam discos, temos registos na Rádio
Nacional. Sempre me pareceu que toda a gente fez negócio com essas gravações.
São tantas histórias, tantas coisas que não correram bem. Como quando fomos
para Cabo Verde, em 1987: partimos onze, voltámos quatro. E nunca mais foi o
mesmo. Aquele som, aquela música, perdeu-se. Um ainda lá está. Outros estão em
França. O Sérgio e o Dió estão em Portugal. Eu vim em 1999. Tenho trabalhado na
construção civil, e toquei nos TR ou nos Dombó, e agora estou nos M.V. 4, com antigos
membros de Sangazuza e Untués. É engraçada esta reunião”, conclui: “Eu e o João
Seria somos como o Coluna e o Eusébio da África Negra, e os outros que vêm com
ele são de outras gerações. Prova que a África Negra resiste… Que ainda está viva”.
É
com equipamento dos M.V. 4 que, no Bar do Roque, na Cova da Moura, esta renovada
África Negra ensaia. Acabado de chegar, e a dias de partir para Sines, o cantor
João Seria faz as apresentações: “Olha, ali, o meu compadre Albertino. Este
miúdo, grande cantor, o Elizio, um dia há de me substituir. O Emídio Vaz não
pôde vir, mas está aí o Nando. E o Coxinho e o Adriano.” Move-se como quem não
se perturba pela gravidade. Magro, de gestos teatrais, levípede, possui a
concentração de um ilusionista. “Você já viu este homem a dançar?”, pergunta
Filipe Lima, atual manager da banda,
segurança e motorista no gabinete do primeiro-ministro de São Tomé: “É que, se
nunca viu, vai querer ver. É como o caçula dele!”. João aproveita a deixa: “Dança
muito… E só tem 9 anos. Mas já não faço mais filhos. Fica bem assim. Eram 24,
morreram 6, sobraram 18. Dá até vergonha. Agora já estou a 2 dos 70 anos. Mas não
tenho medo. Nada me mete medo: enfrentei os Kassav’ em Luanda, andei pela Guiné
Equatorial, pelo Gabão, pelo Congo, sempre com a bandeira da África Negra. Com
o Emídio, sou o membro mais antigo. Já não estão entre nós o Horácio, o Emílio
Pontes, o Sr. Mateus Ferreira, que era o dono do talho em que alguns de nós
trabalhavam. Convidaram-me para o conjunto em 1975, estava eu de saída dos
Sangazuza. Lembro-me de quando encontrámos o Leonídio. Quando ele foi para a
tropa, fui falar com o comandante e disse: ‘Estou a precisar desse puto, meu
irmão. Sem ele acaba a África Negra’. Ele respondeu: ‘Leva-o. Tocam sábado,
domingo e segunda e na terça entregam-mo aqui no quartel’. Que tempos! Fizemos
grandes canções, juntos. Só nos separámos em Cabo Verde. Tocámos no Fogo, na
Praia, em Santo-Antão, em São Nicolau, em todo o lado e, no Sal, deu-se aquele
contratempo. Sabe, um jovem tem sempre vontade de saltar por aqui e por acolá. Ficámos
sete para trás porque tínhamos um destino: partir para a América. Nunca fomos. Depois
ainda vivi em Angola, onde mais tarde cantei para o Yuri da Cunha. Ensinei viola
num quartel. Um dia, disseram-me: ‘Vai para o mato animar as tropas; damos-te uma
arma’. Respondi logo: ‘Eu não vou trabalhar com arma, amigo, eu não nasci para
arma, a viola é que é a arma’. Com a África Negra tocámos em zonas cheias de
guerrilheiros. Mas a gente não tinha medo. Eu dizia: ‘Viver ou morrer é igual
ao litro, meus irmãos: o que interessa é atuar’. E é para isso que cá estamos”.