19 de julho de 2014

Maria João Pires aos 70



Simplesmente Maria

Maria João Pires completa 70 anos na próxima quarta-feira, dia 23 de julho, e, ao que tudo indica, mantém-se longe de Portugal, numa sucessão de exílios de difícil superação. Não obstante, acabadas de chegar às lojas, novas edições permitem colmatar a distância entre o país e a sua mais importante pianista de sempre

O folhetim que no início da década de 70 amarrava uma nação ao éter não vem propriamente ao caso. A não ser, claro, que o assunto seja estritamente o do provincianismo ou, se assim o entenderem, que se enlace a história da analfabeta Maria, que, partindo do campo, ia servir para a cidade grande, nessoutra da sobredotada Maria, que, na mesma altura, andava à conquista do mundo longe da periférica capital em que nasceu. Por tratarem ambas da dor do exílio, talvez. Ou, quiçá, e num plano muito simbólico, quase supersticiosamente mariano, por ter a segunda procurado redimir a primeira. Afinal, não foram poucas as vezes que João Pires se norteou pelo sempiterno anseio do ‘regresso à terra’. Ainda há uns anos, ao norte-americano “ArtsJournal”, dizia: “Tenho uma fortíssima relação com a natureza; com o ar, o vento, o sol. Na cidade sinto-me sempre com sede.” Na imprensa portuguesa, com a típica condescendência com que se toleram as bucólicas extravagâncias das elites, era habitual, ao longo dos anos, surgirem crónicas dessa vida elementar: Maria João Pires a conduzir um trator e a cuidar de uma horta; a ordenhar uma vaca e a dar de comer às galinhas; a viver numa autocaravana. Em 1982 contava ao Expresso a sua experiência num ermo alentejano: “Comprámos um motor para puxar a água da fonte, acendíamos a lareira quando estava muito frio. As miúdas iam à escola de bicicleta, eu lavava a roupa, esfregava a casa e cozinhava”. De certa forma, o Centro de Estudos para as Artes de Belgais foi o culminar desse processo. Daí, do distrito de Castelo Branco, perguntava ao espanhol “El País”: “Porque se põe no seguro as mãos de um pianista e não as de um agricultor?”. Também o Expresso publicou, há uma dúzia de anos, um amplo retrato dessa quinta que Pires converteu num holístico cenário de pedagogia experimental e inclusiva, e que parecia combinar elementos de uma colmeia, de uma comuna, de um convento ou de um complexo habitacional de uma seita, antes de ter fechado portas acrimoniosamente.

O que o Estado português não garantiu encontrou a pianista em Salvador da Baía, no Brasil, para onde partiu quando se cansou em definitivo de um país que a desilude desde que nasceu – afirmou-o, há mais de 30 anos, precisamente ao Expresso. E é, presumivelmente, o que desenvolve, hoje, nos arredores de Bruxelas, ao abrigo da Capela Musical Rainha Isabel, instituição de ensino musical em que é docente, através dos projetos Partitura e Equinox: um, dedicado à transmissão do conhecimento em recitais partilhados com solistas prometedores, outro, consagrado à prática coral e a crianças desfavorecidas. Na sua teoria da educação, ela, que crê que a “a arte não se ensina”, enfatiza “a parte emocional, empírica, o que é do domínio do inexplicável”. Guia-a um sobressalto de lógica que sintetizou à francesa “Classica”: “Especialistas do mundo inteiro interrogam-se: ‘Que planeta vamos deixar aos nossos filhos?’ Pois, a mim, preocupa-me mais o seguinte: que filhos vamos deixar ao nosso planeta?” Nesta matéria, a sua candura é apenas superada pela honestidade. 
E este novo registo com o maestro Daniel Harding prova que efetivamente prefere a cooperação à competição. Num programa votado a Beethoven, irradia felicidade ao tocar a cadência do Allegro con brio do “Concerto para Piano Nº 3 em Dó menor”, está envolta em lençóis de seda no Largo e, de seguida, no Rondo-Allegro, salta da cave para o sótão do teclado e atinge gloriosa e incredulamente a meta – Rosa Mota, em Seul, esticando os braços para o ar com os dedos em V. Já no “Concerto para Piano Nº 4 em Sol maior” parteja um Allegro moderato com a estrutura óssea de um recém-nascido e sugere um Andante con moto como só um filósofo o poderia fazer e analisa o Rondo-Vivace ao microscópio. Na apresentação fala do “culto da personalidade” e do modo em que o conceito atrapalha a capacidade de “trazer a lume uma simplicidade primitiva, presente em todos nós”, e do objetivo em operar um “milagre simples: abrir um canal até à nascente da qual toda a música emana”.
Não se pode dizer que tenha feito outra coisa ao longo dos anos, embora, somando as gravações da Deutsche Grammophon às da Erato (estas, recentemente compiladas em “The Complete Erato Recordings”), se detete algo que a conclusão do contrato com a chancela alemã, aliada à estreia pela Onyx, indicia poder ter chegado ao fim: a autofágica seleção de repertório. Seja como for, para iniciados, revela-se indispensável a antologia “Complete Solo Recordings”, na qual se reúnem discos lançados entre 1989 e 2013. Aqui está o seu hagiográfico Schubert, cercado de murmúrios, polvilhado de feitiços, um escudo para manter à distância o mundo hostil: no “Improviso em Si bemol maior”, a princípio, lembra a menina que se aproxima de uma poça com receio e curiosidade, e logo depois é como se acompanhasse o golfinho que tem tatuado no pulso direito aos mortais numa piscina. Está o Bach, da “Partita Nº 1”, que toca como quem invoca vidas passadas, ou da “Suíte Inglesa Nº 3”, repleta de espelhos, algo baça e mecânica, uma mulher de meia-idade a jogar Mahjong. E o Beethoven da sonata ‘Ao Luar’, em que as mãos são faróis a rasgar a noite. Ou um Schumann, mais próximo do pensamento do que da ação, do espírito do que da carne, tímido até perante as suas notas. Está o Chopin, da “Berceuse em Ré bemol maior”, cintilante como a purpurina metálica das estrelas num mar de agosto, dos “Noturnos”, do segundo Prelúdio, que se interpreta a olhar por cima do ombro – e o proto-minimalismo do terceiro e a proto-bossa nova do quarto e o vento a lutar com Buster Keaton do 12º - e o das “Mazurcas”, que tempera com mão de cozinheira, e o das “Valsas” das professoras de balé. Está, claro, o eutésico Mozart, da integral de sonatas, de sorrisos e suspiros, com João Pires a recordar a cada compasso todos os metros de viagens que fez enquanto menino-prodígio: as vistas panorâmicas, os segredos a cada curva, os enjoos, as miragens, as saudades. Cada uma que termina é como uma porta a bater com a corrente de ar na outra ponta da casa.

No ano passado, à revista “Pianiste”, declarava que “o comércio nada tem a ver com a arte”, e que receava que os artistas que tal não compreendiam acabassem por “perder a alma”. Em 1997, ao “Libération”, reconhecia ter assinado pela Deutsche Grammophon “porque precisava do dinheiro” que lhe permitisse oferecer às filhas “algo mais que uma vida no campo”. Em 1986, anunciava ao Expresso: “No momento em que sentisse que estava metida num comércio, vinha-me embora”. Foi tudo o que quis e muito do que não quis, foi mantendo os ideais e perdendo uma alma que tentou repetidamente reencontrar. Partiu e talvez regresse, um dia. Por acaso, chama-se simplesmente Maria.


Maria João Pires “Complete Solo Recordings” (20 CD Deutsche Grammophon, 2014)

Beethoven: Piano Concertos 3 & 4 - Maria João Pires (p), Swedish Radio Symphony Orchestra, Daniel Harding (d) (Onyx, 2014)

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