Amplamente
sugestivo, o plano inicial de “I Love Kuduro”, ao largo da baía de Luanda, é,
também, o mais conscientemente cinematográfico e historiográfico entre os que o
documentário possui. Mas qualquer perturbação narrativa se desfaz logo que
Mário Patrocínio tira o foco das costas de um remador em tronco nu para de
seguida o ajustar aos contornos de uma cidade com mais gruas do que prédios.
Nesse segundo, o que o realizador dá a conhecer é uma realidade que, minutos depois,
se manifesta deste modo na boca de Shunnoz Fiel: “Eu estou aqui e sou Angola”. E
é dessa curta introdução, ou melhor, do sigiloso murmúrio das águas que lhe
perfaz a banda-sonora, que vai emergindo um espaço urbano que se diria ter
escapado ao apocalipse por um triz. É apropriado que assim seja, pois, de
facto, sem Guerra Civil não teria havido kuduro.
E é nessa evidência que, de maneira mais ou menos eufemística, se vai
tropeçando a cada capítulo do filme. Fiel fala do conflito enquanto ‘o grande formador’;
Francis Boy relata uma fuga em família do Malanje; Nagrelha diz “Nossos avós já
sofreram muito”; Manda Chuva, dançarino, conclui “A guerra é que nos faz fazer tudo
o que você costuma ver”. Só Eduardo Paim não vislumbra a incongruência de
analisar o kuduro à luz do passado. Mas
é nesse inultrapassável paradoxo – o de que, tendo tudo a ver com a cultura
angolana de hoje, quase nenhum ponto de contacto mantém com a música angolana
de ontem – que, para o bem e para o mal, reside o busílis. E será isso o que
permitiu que a ordem pimba internacional (de Don Omar e Shakira a Pitbull) e lusófona
(de Emanuel e José Malhoa a Adriana Lua) o tenha prontamente liofilizado. Este
extraordinário objeto devolve-lhe a vida.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
27 de setembro de 2014
Elia y Elizabeth “La Onda de Elia y Elizabeth” (Vampisoul, 2014)
Não
se pode dizer que tivessem nascido em berço de ouro. Mas duvida-se igualmente
que gozassem de qualquer intimidade com ambientes mais favoráveis à dissensão
política. E, no entanto, na Colômbia de inícios de 70, ao cantarem “Com o
pôr-do-sol tudo termina/ Deves ser forte e não morrer tu também/ Forte e
resistir”, não se vislumbrava mensagem mais adversa aos interesses da Frente
Nacional. Isto numa melodia cuja ambição última parecia ser a de se tornar
suave como a brisa (pense-se no que, em Portugal, faziam contemporaneamente
Mini Pop, Irmãs Muge ou Techa). E tudo porque, lá está, Elia Fleta Mallol, uma
jovem de 19 anos, coadjuvada por Elizabeth, sua irmã, de 18, encontrou no mais
cativo da sua existência matéria para reescrever o livro da vida e negociar com
o que possuem os outros de mais arbitrário. Escutando hoje, nesta antologia, as
canções que gravaram entre 1972 e 1973, extraídas ao seu único par de LP, em
que as acompanhava o conjunto Onda Tres, de Jimmy Salcedo, esbarra-se num gesto
tão irredutível que se diria derivar da ação de quem desvendou os mistérios do
mundo mal abriu os olhos pela primeira vez, quando, na realidade, é o inverso
disso mesmo o que aqui se celebra. Pois é o resíduo de insubmissão que ainda se
deteta no espírito humano quando nada mais o anima aquilo que esta música
enforma. Talvez por isso, desde então, em campos de refugiados, em focos de
miséria, alienação e junto dos que sofrem à mão da tirania, se tenha Elia
dedicado a administrar cuidados paliativos a um planeta em extinção. Há 40
anos, ao precocemente compor ‘En los días en que era demasiado joven’, não
estava a fazer outra coisa.
Nicola Benedetti “Homecoming: A Scottish Fantasy” (Decca, 2014)
O
vínculo não podia ser mais institucional. Mas o impulso, esse, vem de há muito.
Afinal, Benedetti, membro da Mui Excelente Ordem do Império Britânico, crê que mostrar
a sua herança cultural possui “uma relevância inata para tudo aquilo que se é”.
Afirma-o numa cuidada apresentação de “Homecoming” em que, às tantas, como os
políticos, fica sem saber a quem se dirigir. Isto porque, mais que diminuir o
fosso entre independentistas e unionistas, a natural do Ayrshire com perfumada ascendência
italiana ambiciona algo à primeira vista ainda mais imprudente: aproximar o que
há muito existindo em simultâneo nunca se provou propriamente conciliável, isto
é, “música clássica e folclore escocês”. A coincidência dessa imperiosa
necessidade com o intervalo de tempo em que o referendo era o único assunto em
cima da mesa não terá sido calculada. Nem poderá ser lida à luz de factos
recentes a escolha de indumentária para a foto de capa: um vestido em xadrez
concebido por Vivienne-“Odeio Inglaterra”-Westwood. Dado que, de facto, a
violinista comporta-se aqui um pouco à semelhança da protagonista de
“Outlander” – série televisiva que decorre em parte no período da Guerra
Jacobita e que permanece conspirativamente por estrear no Reino Unido –, vagueando
por um tempo que não é seu numa terra que não é inteiramente sua, mistificada
por um tumulto alimentado a história e fantasia. Na peça titular de Bruch,
Benedetti está bem-comportada. Nas restantes, um vendaval de rabecas, pífaros,
acordeões e baladas em gaélico, está como uma menina de boas famílias cuja tendência
para o palavrão leva a que toda a gente pense: ora aí está um espírito
independente.
Sérgio Mendes & Brasil ’66 “Stillness” (Soul Jazz, 2014)
A sensação era de déjà
vu. A propósito, atentando à capa, dir-se-ia até que se transplantavam Crosby,
Stills, Nash & Young para a colina em que John Lennon e Yoko Ono inocentemente
repousavam em “Plastic Ono Band”. Ou seja, não sem ironia, “Stillness” restabelecia
a ordem natural das coisas – afinal de contas, a mudança – sob o signo da
quietude. Nada de estranho naquele que, tendo já saboreado como poucos o
sucesso, havia há muito convertido errância em identidade e transformação
interior em destino. Aliás, só a camisa às cornucópias de Sérgio Mendes,
prontamente coberta no verso do LP por um invernoso casaco de peles, denuncia a
época de que o disco provém. Por isso, talvez, uma seleção de repertório que
aponta para um plácido Laurel Canyon em que Joni Mitchell, Gram Parsons,
Jackson Browne ou Richie Furay tinham domesticado questões mais prosaicas, de
corações partidos à febre dos fenos. Mas, também, pois não se fala aqui propriamente
de seitas, para algo que terá ficado da década de 60: saber escutar os outros. Combinadas
com testemunhos de independência espiritual chegados do Brasil, eis ‘Chelsea
Morning’, com letra escrita pelo trânsito que passava junto à janela de
Mitchell, ou ‘For What It’s Worth’, em que Stills observava o impacto das
forças de repressão na ‘verdade das ruas’. Tudo isto o proverbial passo atrás
para que depois se dessem dois à frente? Nem por sombras. Mas, quiçá, nesse
1970, a necessária pausa para respirar de que precisa a música sempre que se
prepara para um recuo ainda maior. Ouça-se, já sem Lani Hall e assinados por
Brasil ’77, “País Tropical” ou “Primal Roots”, os tomos que se lhe seguiram.
20 de setembro de 2014
Rodrigo Amado Motion Trio & Peter Evans "Live in Lisbon" & "The Freedom Principle" (NoBusiness, 2014); Rodrigo Amado "Wire Quartet" (Clean Feed, 2014)
Peter Evans goza de tão
privilegiada relação com Portugal que este nem é o seu primeiro “Live in Lisbon”.
Esse gravou-o em 2009, ao longo de uma atuação em quarteto no Jazz em Agosto. E
pela sua discografia, de modo mais ou menos nominal, encontra-se o enigmático “Scenes
in the House of Music”, registado na Casa da Música, e o elucidativo “The
Coimbra Concert”, captado no Salão Brazil. Em maio deste ano tocou no Panteão
Nacional, em Lisboa, e na Culturgest, no Porto. E daqui a duas semanas estará
no Barreiro para um concerto em quinteto e uma master class no mesmíssimo festival, o Out.Fest, a que Rodrigo Amado
conduzirá o Wire Quartet. De tudo isto – e porque Evans se revelou uma força
decisiva na criação de formas contemporâneas de expressão para trompete – tem ficado
um balanço algo hagiográfico. Mas instantes há em que a prevalência do seu
modelo comunicacional se prova eminentemente corruptora. Atente-se ao que se
passou a 16 de março de 2013, no Teatro Maria Matos, durante uma reunião com
Amado, Miguel Mira e Gabriel Ferrandini – o Motion Trio. Aí estiveram as
cifradas figuras sinusoidais de que é intérprete exclusivo, a tradução musical
da dispneia de que é praticante único, o retrato em pessoa da higidez e uns hálitos
e humores tão voláteis que roçavam a bipolaridade, arsenais de grasnidos,
guinchos e grunhidos. Um idioma tão invulgar, indecente e ilícito que, por
vezes, quem consigo dividia o palco parecia estar a participar numa sessão de
terapia da fala após um trauma. Daí resultava também a impressão de se fazerem
ouvir, de uma só vez, dois discos em diferentes rotações. Coisa que a imagem
parcial dessa noite, “Live in Lisbon”, ameniza num par de temas. Escalpelam-se aqui
ritmos e timbres de maneira mais democrática e dispersa-se a tendência para a
anulação mútua. Evans não é só um R2-D2 com mau génio, mas é óbvio que Amado
lhe traz ao de cima o que de mais perverso possui e, por momentos, o que se examina
é um dueto entre o saxofonista e um mimus
polyglottos. Já com Mira, no fim de ‘Conflict is Intimacy’, o
norte-americano rebenta plástico-bolha e joga ténis de mesa, deliciado com as
múltiplas heresias que o seu instrumento lhe coloca à disposição. ‘Music is the
Music Language’ é mais axiológico. E dir-se-ia, até, que se aceita o que Evans produz
enquanto ficção, não tanto como realidade, ainda que se contrarie assim uma
prática – a da música improvisada – em que normalmente sobressaem aspetos coletivistas.
Amado convoca um tom mais inerte e tolhido do que o habitual, torna-se rugoso e
rigoroso, morde notas e dissipa o manto de futilidade que o envolve com o mesmo
esforço com que os restantes elementos do trio se tentam livrar das receitas que
Evans lhes prescreve. Já este tem vagar para tudo – ora ameaça tocar o
“Concerto para Trompete em Mi maior”, de Hummel, ora se propõe a anunciar uma tourada
– e recorda o relato daqueles que, implicados num acidente de viação, asseguram
ter assistido em câmara lenta ao desenrolar dos acontecimentos.
Passados dois dias, curiosamente, o
grupo entrava em estúdio. E “The Freedom Principle” documenta esse encontro em
que Evans se declarou um pivô cultural mais sutil e menos autónomo, não
obstante permanecer antitético e contaminado por uma mentalidade de trincheira.
A abrir o CD, no tema titular, a bateria de Ferrandini movimenta tropas
agitadamente, no violoncelo de Mira atropelam-se as vozes dos inocentes e
esquadrinha os céus o saxofone de Amado à medida que Evans solta o aviso de
ataque aéreo. Pouco depois, o trompete é uma viatura a rasgar chuva miudinha encosta
acima e dá-se uma cena de perseguição com dois competidores a ultrapassarem-se em
curvas escorregadias e apertadas. É um espaço de improvisação simultânea em que
não é apenas Evans que vai sem piedade no encalço das suas ideias. A estrada,
junto ao mar, aparenta levar a um cemitério de navios: um zéfiro dirige
gaivotas, respondem sirenes de nevoeiro, o ar salgado inquieta campainhas e
afrouxa o chiar de roldanas enferrujadas, ondulam chapas. Rodrigo identifica o
tom queixoso de que comungaram quer os saxofonistas de hard bop quer os de free jazz
e sonda a paisagem. De um farol entrevê-se a promessa de bom tempo e talvez
seja por isto que se promoveu esta viagem. A sensação desfaz-se com um solo de
Evans em que derrapam pneus, estalam elásticos, travam sapatilhas num campo de
basquetebol, não se calam os vizinhos nem aquele tipo chato numa festa,
sintetizam-se uns 200 anos de música para trompete e dá-se mostras de se vislumbrarem
outros 200. Em ‘Shadows’ trata-se de ciclos: num filme com fotogramas acelerados,
Evans é um miúdo a fazer barulhos de motor com a boca enquanto brinca com
carrinhos, depois é um adolescente a dar beijinhos e logo de seguida resmunga
como um velho rabugento. O escopo de Amado é menor e mais alheado da ação:
pinta um episódio da vida doméstica em que as personagens se diriam saídas do
teatro cabúqui. E sempre que se suspendem os sopros dão-se surpresas: o
baterista e o violoncelista vêm ver a obra, cercam-na de andaimes e cobrem-na
de outra cor. A sua forma de agir é tão contrária à comum que se caracteriza com
frequência em termos negativos, mas naquelas ocasiões em que se confundiria o
que aqui se passa com a representação de um quarteto de jazz particularmente
desalinhado descrever-se-ia uma secção rítmica que vem mais de dentro da música
do que de baixo. Fechando o álbum, em ‘Pepper Packed’ soa a corneta de caça que
larga os beagles atrás da raposa e um epigramático solo de Evans, em que só
faltou o “Voo do Moscardo”, de Rimsky-Korsakov, simboliza perfeitamente a
facilidade do seu autor em acumular informação superficial e o delinquente deleite
que tem em divulgá-la. Alienado, Amado estende notas como um saxofonista a tocar
debaixo de uma ponte e Evans corre poeticamente até si. Enleiam-se instantaneamente
numa linha melódica e lança-se a dúvida se não haveria, então, uma peça a
passar para o papel. Aliás, a questão é: sentir-se-iam mais ou menos orgulhosos
se o fizessem?
Verifica-se tanto de revogatório na
experiência de Rodrigo Amado com Peter Evans que se tomaria “Wire Quartet” –
Amado, Ferrandini, Hernâni Faustino e Manuel Mota – por um regresso a prazeres
mais caseiros. Mas, antecedendo-a, remonta a janeiro de 2011 esta elementar
combinação de biografia e fantasia, utópica parábola para uma arte que se quer
movida segundo a lógica e a precisão da consciência e na qual se anseia detetar
o capricho e o poder de invenção do instinto. Começa e, aos acordes inaugurais,
parece trazer versões muito oblíquas de canções como ‘My Old Flame’ ou ‘You
Don’t Know What Love Is’ que imediatamente leva a passear de dimensão em
dimensão. Ferrandini lembra os tempos em que batalhões de escriturários martelavam
coreograficamente em máquinas de escrever os guiões das suas sofisticadas
existências e Mota, à guitarra elétrica, assemelha-se a um pescador a
desemaranhar redes, ignorante de qualquer outro grau de delicadeza na sua vida.
Aos 10 minutos estão no topo de um edifício ou de uma falésia olhando os seus
instrumentos do alto. Amado ataca conjuntos de 4 ou 5 notas e é como se uma
verdade universal ficasse promulgada a cada modulação. Há uníssonos como flores
murchas a indicar a entrada de um templo abandonado. E ainda se ouve um blues exequial eticamente cadenciado por
Faustino no contrabaixo. E escuta-se uma estória dúctil como a memória, que vem
de perto e chega tão longe.
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