La
Capella Reial de Catalunya, Le Concert des Nations, Hespèrion XXI, Jordi Savall
Há cerca de um ano, em entrevista
ao Expresso, Caetano Veloso ilustrava uma aparente discordância temporal: “‘Cê’
é, para mim, o melhor dos três [álbuns] com a nova banda justamente por
significar uma redefinição do meu trabalho de compositor. [Por me levar] a
coisas que de facto mudam o passado.” Isto é, quiçá por saber que o presente é dinâmico,
e resistindo ao apelo oracular que acompanha um novo opúsculo, o cantor, no
momento em que falava sobre os seus discos mais recentes, vinha dizer que cada
gesto seu está sempre muito cheio da sua própria história. Ou, melhor, que, também
na vida de um criador, cada instante se situa em forma de diálogo com os que o
precedem e não só com os que o vão suceder. A 17 de outubro, no discurso de
aceitação da Medalha de Ouro do governo da Catalunha, era Jordi Savall que se referia
a algo do género: “Não há Música Antiga, mas sim partituras antigas. A música é
um ato contemporâneo, sempre atual e renovado, e é o intérprete quem lhe
confere essa vitalidade.” Outra coisa não comprova “Guerra & Paz”: pela
índole, com peças de Schein, Dumanoir, Rosenmüller, Lully, Cavalli, Cererols,
Blow, Charpentier, Caldara, Biber ou Handel, maioritariamente consagrado a
expressões do barroco e, por questões de estrutura, limitado pelo século que
termina em 1714 (a data do fim da Guerra da Sucessão espanhola, cujo tricentenário,
em parte, assinala), mas, para todos os efeitos, organizado à luz da autodeterminação
catalã. Por isso, não hesita igualmente Savall em transformar o seu passado,
mergulhando nos arquivos e encontrando registos – um de 1987, da altura em que
gravava para a Astrée, e os restantes captados entre 1996 e 2014 – que melhor
representem o tema.
Com o mesmo propósito se estabelece,
aqui, uma cronologia que dá destaque à Guerra dos Trinta Anos, à Guerra dos
Oitenta Anos, à Guerra dos Segadores, ao Tratado dos Pirenéus, ao Tratado de
Ryswick ou, claro, aos acontecimentos que culminaram na Paz de Utrecht e no
cerco de Barcelona, ainda que o pretexto, como se lê nas notas de apresentação
do projeto, seja determinar-se “a magnitude desta constante tragédia europeia:
o recurso à ‘cultura da guerra’ como maneira de resolver diferenças culturais,
religiosas, políticas ou territoriais.” É estranho – até porque, desse modo, pela
evocação da Guerra Luso-Holandesa, ganharia exemplos à escala global – que Savall
não tenha olhado para o lado. Afinal, esta sua iniciativa editorial abrange a
dinastia filipina e a Guerra da Restauração. Debalde, a única referência a
Portugal surge num verso da explicativa ‘Cant dels Aucells quan arrivaren los
vaxells davant Barcelona y del desambarch de Carlos III’, em que se ouve: “Canta
o chamariz: vivam Carlos, terceiro/ O duque de Saboia/ E também os generais de
Inglaterra e Portugal”. Seria uma perspetiva interessante – o apoio português à
independência da Catalunha – para alguém que, há meia dúzia de meses, com Pep
Guardiola, Josep Carreras, Joan Massagué, Pol Antrás e Xavier Sala i Martín,
assinou o texto “Dad a Cataluña su libertad”, defendendo que uma constituição “deve
ser um documento vivo, capaz de adaptar as leis às necessidades dos cidadãos” e
que “Madrid prefere adotar a tática do medo, refugiando-se em subterfúgios
legais, em vez de permitir um voto livre e justo como aquele que os catalães
reclamam.” O mesmo Savall que, semanas depois, a 30 de outubro, numa carta ao
ministro José Wert, recusou o Prémio Nacional de Música alegando que não podia
aceitar a distinção sem trair os seus “princípios e convicções mais íntimas”. Agora,
em nome das suas crenças, e dependendo tanto de um conceito quanto do outro,
expõe esse absurdo paradoxo civilizacional pelo qual se eleva a guerra a uma
arte e se reduz a paz a um artifício.