28 de março de 2015

"Guerra & Paz: 1614 – 1714" (Alia Vox, 2014)




La Capella Reial de Catalunya, Le Concert des Nations, Hespèrion XXI, Jordi Savall   

Há cerca de um ano, em entrevista ao Expresso, Caetano Veloso ilustrava uma aparente discordância temporal: “‘Cê’ é, para mim, o melhor dos três [álbuns] com a nova banda justamente por significar uma redefinição do meu trabalho de compositor. [Por me levar] a coisas que de facto mudam o passado.” Isto é, quiçá por saber que o presente é dinâmico, e resistindo ao apelo oracular que acompanha um novo opúsculo, o cantor, no momento em que falava sobre os seus discos mais recentes, vinha dizer que cada gesto seu está sempre muito cheio da sua própria história. Ou, melhor, que, também na vida de um criador, cada instante se situa em forma de diálogo com os que o precedem e não só com os que o vão suceder. A 17 de outubro, no discurso de aceitação da Medalha de Ouro do governo da Catalunha, era Jordi Savall que se referia a algo do género: “Não há Música Antiga, mas sim partituras antigas. A música é um ato contemporâneo, sempre atual e renovado, e é o intérprete quem lhe confere essa vitalidade.” Outra coisa não comprova “Guerra & Paz”: pela índole, com peças de Schein, Dumanoir, Rosenmüller, Lully, Cavalli, Cererols, Blow, Charpentier, Caldara, Biber ou Handel, maioritariamente consagrado a expressões do barroco e, por questões de estrutura, limitado pelo século que termina em 1714 (a data do fim da Guerra da Sucessão espanhola, cujo tricentenário, em parte, assinala), mas, para todos os efeitos, organizado à luz da autodeterminação catalã. Por isso, não hesita igualmente Savall em transformar o seu passado, mergulhando nos arquivos e encontrando registos – um de 1987, da altura em que gravava para a Astrée, e os restantes captados entre 1996 e 2014 – que melhor representem o tema.

Com o mesmo propósito se estabelece, aqui, uma cronologia que dá destaque à Guerra dos Trinta Anos, à Guerra dos Oitenta Anos, à Guerra dos Segadores, ao Tratado dos Pirenéus, ao Tratado de Ryswick ou, claro, aos acontecimentos que culminaram na Paz de Utrecht e no cerco de Barcelona, ainda que o pretexto, como se lê nas notas de apresentação do projeto, seja determinar-se “a magnitude desta constante tragédia europeia: o recurso à ‘cultura da guerra’ como maneira de resolver diferenças culturais, religiosas, políticas ou territoriais.” É estranho – até porque, desse modo, pela evocação da Guerra Luso-Holandesa, ganharia exemplos à escala global – que Savall não tenha olhado para o lado. Afinal, esta sua iniciativa editorial abrange a dinastia filipina e a Guerra da Restauração. Debalde, a única referência a Portugal surge num verso da explicativa ‘Cant dels Aucells quan arrivaren los vaxells davant Barcelona y del desambarch de Carlos III’, em que se ouve: “Canta o chamariz: vivam Carlos, terceiro/ O duque de Saboia/ E também os generais de Inglaterra e Portugal”. Seria uma perspetiva interessante – o apoio português à independência da Catalunha – para alguém que, há meia dúzia de meses, com Pep Guardiola, Josep Carreras, Joan Massagué, Pol Antrás e Xavier Sala i Martín, assinou o texto “Dad a Cataluña su libertad”, defendendo que uma constituição “deve ser um documento vivo, capaz de adaptar as leis às necessidades dos cidadãos” e que “Madrid prefere adotar a tática do medo, refugiando-se em subterfúgios legais, em vez de permitir um voto livre e justo como aquele que os catalães reclamam.” O mesmo Savall que, semanas depois, a 30 de outubro, numa carta ao ministro José Wert, recusou o Prémio Nacional de Música alegando que não podia aceitar a distinção sem trair os seus “princípios e convicções mais íntimas”. Agora, em nome das suas crenças, e dependendo tanto de um conceito quanto do outro, expõe esse absurdo paradoxo civilizacional pelo qual se eleva a guerra a uma arte e se reduz a paz a um artifício.

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