Na região metropolitana de Nova
Iorque, em Long Island, mais precisamente na área de Dix Hills, encontra-se
Candlewood Path. É uma rua discreta, algo fechada sobre si mesma, indistinguível
entre os milhares a que se assemelha. No verão cheira a erva miúda e no inverno
a lenha queimada e só a respiração da interestatal lhe adia o coma profundo. Ou
seja, é ideal para McMansions. Há coisa de dez anos, aliás, propôs-se demolir o
247, uma moradia rústica de piso térreo. A empreitada gorou-se e, hoje, numa
placa, lê-se que, de 1964 a 1967, ano da sua morte, aí viveu John Coltrane, e
que foi aí que compôs “A Love Supreme”. Alice, sua viúva, num livro que Ashley
Kahn dedicou ao disco, conta que a casa tinha um anexo: “Raramente lá íamos, mas,
no outono de 1964, o John começou a passar lá mais tempo. Levava lápis,
cadernos, qualquer coisa para comer. Até que, um dia, apareceu com uma tamanha
alegria estampada no rosto, uma paz e tranquilidade tais, que lhe pedi para me
contar o que se tinha passado. Disse-me que tinha recebido de uma assentada a
música que queria gravar. Que tinha tudo.” Com efeito, o LP é essa coisa rara
na história, quando os factos reais da vida de muitos se parecem subitamente
materializar nas intuições domésticas de um só. Esta edição, com takes inéditos da malograda sessão de
dia 10 de dezembro (quando Coltrane, quiçá a duvidar do milagre da véspera,
insistiu para que Archie Shepp e Art Davis se juntassem ao seu quarteto) só
contribui para reforçar o que já se sabia: que o jazz nunca mais foi o mesmo
porque a própria humanidade não podia permanecer como antes.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
31 de dezembro de 2015
Holliger: Machaut-Transkriptionen (ECM, 2015)
Geneviève Strosser (va), Jürg Dähler (va), Muriel
Cantoreggi (va), The Hilliard Ensemble
Em notas de apresentação, Heinz
Holliger fala-nos de novas perspetivas. Refere-se, como é óbvio, à sua própria
atividade enquanto compositor e ao impacto que nela teve o “estudo aprofundado”
da obra de Guillaume de Machaut (1300-1377). Mais à frente no texto, quando faz
referência a cada uma destas suas “Transcrições” (dispostas no CD de modo
alternado com alguns dos modelos de que procedem, como “Biauté qui toutes
autres pere” ou “Hoquetus David”), recorre a palavras como “atomização”,
chegando a fazer alusão à “excitação de partículas” não tanto como ela é
estudada pela física mas antes como surge na poesia de Celan (Partikelgestöber). Não explica que, mais
tarde, Celan teve de tornar claro que esses versos eram em parte instigados
pela memória de Hiroxima e escritos “em prol da humanidade e contra o esvaziar
e o atomizar [dos seus valores].” Seja como for, o poema permanece útil para
quem queira explicar algo do que aqui se passa. Por exemplo, que, no seu
melhor, já não são bem os temas de Machaut e os de Holliger que estão
eficazmente tecidos lado a lado mas sim outra coisa qualquer que entre eles se
colocou, que os esgarçou e tornou a coser e de que mal conseguimos hoje
entrever as costuras: 600 anos de cinzas. A ideia não é nova. Afinal, Machaut, por
intermédio de Schoenberg ou Messiaen, havia chegado a Goeyvaerts, Boulez e
Stockhausen. Mas a sua aplicação, é. Com clímax em “Complainte und Epilog”, não
se pretende tanto conferir autoridade a um programa de música contemporânea por
via da especulação historicista quanto fazer com que um tempo se dissolva no
outro.
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Paul Celan
Arianna Savall, Petter Udland Johansen, Hirundo Maris: Il Viaggio D’amore (Carpe Diem, 2015)
Exige algum comprometimento com os aspetos
mais sentimentais da celebração que propõe, mas, com efeito, a verdade é que
este disco encerra com ‘Gracias a la Vida’, a canção que Violeta Parra terminou
pouco antes de pôr um ponto final na sua existência física com um tiro na
cabeça. Ou seja, num programa que vai liquefazendo relógios e ignorando
fronteiras, da Península Ibérica ao Chile, da Itália à Noruega, da Áustria à
Inglaterra, do Renascimento ao século XX, é como se Arianna Savall (voz e
harpa), Petter Udland Johansen (voz e rabeca) e os demais músicos do ensemble
Hirundo Maris, através de tamanha ambiguidade, viessem dizer que o amor é por
excelência o palco de todas as contradições ou, quiçá, num derradeiro arroubo
romântico, que com a morte não vem necessariamente o fim. Há aqui pelo menos
uma canção que mais do que isso não diz – ou melhor, trata-se de uma adaptação,
por Arianna, de um poema de Apollinaire (“L’adieu”) em que o narrador aspira à
eternidade. Mas as visões sobre o amor que este CD propõe são mais variadas: há
espaço para a traição (‘Rosa fresca’), para a sedução (‘Yo me soy la
morenica’), para o incesto (‘La Dama d’Aragó’), para a rejeição (‘Si dolce è il
tormento’, o famoso madrigal de Monteverdi), enfim, para a consumação (‘L’amour
de moi’ e, ao que tudo indica, também o espinhoso ‘Heidenröslein’, de Schubert
e Goethe, outro tanto não vem simbolizar). No entanto, cada perspetiva é em si
mesmo absolutamente definitiva e completamente parcial. Lá está, só a trova de
Parra se mostra capaz de conciliar contrários. A viagem só fica mais pungente
por isso.
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Violeta Parra
24 de dezembro de 2015
Igor Levit: Bach; Beethoven; Rzewski (Sony, 2015)
Ambicioso programa, este, livre de
todos os complexos e atavismos, apesar de comprometido, e, quanto muito, a
despertar o vago aroma daquela altura de arruadas e ruturas, quando o que cada um
dava mostras de saber da sua consciência política parecia depender diretamente do
que fazia com o sabor do seu corpo. O que é o mesmo que dizer que Igor Levit, pese
embora a presumível serialização da sua tese, se situa agora no pleonástico
domínio do extraordinariamente singular. Aliás, se tanto, peca o pianista por,
a preceito, apontar a seta do tempo numa só direção: i.e., as “Variações
Goldberg”, de Bach, estão no primeiro CD, as “Variações Diabelli”, de
Beethoven, estão no segundo, e as 36 variações que Frederic Rzewski compôs a
partir do ‘El pueblo unido jamás será vencido!’, escrito por Sergio Ortega e
popularizado pelos Quilapayún, vêm no terceiro, como se fossem umas precursoras
das outras. Quando é pela audição das obras no sentido contrário ao que aqui está
– de uma ou de outra maneira são três horas bem passadas – que se comprova uma
daquelas insólitas intuições de Borges: de que, por vezes, na arte, há factos recentes
que influenciam outros que lhe são mais remotos. É o que se deduz de uma interrogação
de Levit retirada às notas de apresentação deste disco: “Até que ponto posso ir
sem deixar de permanecer preso à minha âncora?” Ou seja, ao dividir os átomos
de cada conjunto de variações, além de pós-modernista, este é um registo
moralista que não tem receio de investigar o óbvio ou de sondar o inacessível.
Por sinal, uma condição inerente aos três. Inerente à própria vida.
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