28 de janeiro de 2017

Weinberg: Chamber Symphonies; Piano Quintet (ECM, 2017)



Fez ontem 70 anos, Gidon Kremer, e, em entrevistas, tem falado de tempo perdido. Aliás, ainda na semana passada, em conversa com o “The New York Times”, se censurava por só muito recentemente se ter debruçado a sério sobre a obra de Mieczyslaw Weinberg (1919-1996): “É o exemplo perfeito de uma personalidade negligenciada. Por mim, também. Foi uma enorme falha minha não o ter descoberto mais cedo. Mas, sabe, estas coisas demoram, como um bom vinho [a maturar]”, dizia o violinista e diretor da Kremerata Baltica, a orquestra que fundou há duas décadas e que está igualmente de parabéns. Emendou-se há coisa de três anos, quando a ECM lançou um duplo CD seu consagrado à música camerística e sinfónica do polaco-soviético. 

Agora, apresentando as “Sinfonias de Câmara” e, em estreia mundial, uma orquestração do “Quinteto para Piano” que escreveu a meias com o percussionista Andrei Pushkarev, Kremer não hesita: “O valor da música de Weinberg parece-me óbvio – os seus opúsculos não obedecem a nenhum sistema, nenhuma escola, nenhuma ideologia. [É] uma contínua fonte de inspiração.” É um discurso que retira o capote do fatalismo dos ombros do compositor. E Kremer e a ECM não estão sós, com a Naxos, a Neos ou a Grand Piano a produzirem integrais de Weinberg. Mas é o suficiente para que Alexander Raskatov, numa invocação do seu amigo e colaborador, lamente que ele “não tenha podido testemunhar em vida o triunfo da sua música.” É um pensamento que cobre de melancolia as quatro “Sinfonias de Câmara”, compostas entre 1986 e 1992, quando Weinberg, adoentado e esquecido, lançava um olhar retrospetivo sobre a sua obra tomando em grande parte como modelo quartetos de cordas seus dos anos 40 que nunca tinha conseguido publicar. Também o Quinteto, de carácter pós-Romântico, vem de 1944, mas aqui o que surpreende é a sede de viver que nele se adivinha, a sede que só um sobrevivente à Grande Guerra – e, depois, ao regime Soviético – podia ter, sede que Kremer e Yulianna Avdeeva tornam insaciável.

Wu Wei – Wang Li “Overtones” (Harmonia Mundi, 2016)



Estávamos sentados no chão, lado a lado, de costas apoiadas numa coluna de aspecto ceráceo. Assistíamos à insólita atuação de um trio de berberes que incluía o manuseamento de carabinas e Wang Li estava pasmado. “Um dos membros do grupo também toca berimbau”, comentei, depois, escusadamente, mais para ver se Li voltava à terra. “É incrível”, dizia ele. Perguntou-me se tinha visto o seu concerto e, quando lhe disse que sim, repetiu um desabafo que tinha tido em palco: “Ouço esta música e sinto que já vivi em Marrocos. E que esta gente já teve existência na China.” Desviou o olhar para cima e perdeu-se no rendilhado em madeira entalhada das abóbodas do Dar Adiyel até se pôr a contemplar os astros.

Passava das onze da noite e o público ia-se aos poucos levantando, permitindo que admirássemos os tapetes espalhados pelo pátio do palácio. Meio a brincar, expliquei-lhe que, durante a sua apresentação, e reagindo às permanentes referências que fazia ao vento, parecia que os espectadores iam planando num tapete voador. E que, a mim, quiçá a despropósito, me tinha vindo à memória uma canção que ouvia em pequeno e que dizia: “Costa Brava, Saara, todo o planeta/ Luzes, cometas, mil estrelas do céu/ Pontos de luz vibrando na noite preta/ Tudo quanto é bonito, o tapete e eu.” Ele sorriu, ainda que nunca tivesse ouvido a voz de Gal, e contou-me que gostava de levar o berimbau para as montanhas e de se pôr à escuta: “Não sei se são os meus antepassados que falam, se as minhas vidas passadas ou apenas o vento. Só sei que ao tocar procuro esse som, que é para as pessoas entenderem que, num concerto meu, pode ser que seja o vento a interpretar-me a mim e não o contrário. E espero que nesse instante estejam comigo nas montanhas – elas, eu e a brisa.” Confúcio não teria dito melhor, pensei, enquanto seguíamos em direções opostas pela almedina. A clareza do discurso de Li contrastava com o dédalo arquitetónico da cidade – mais um entre os muitos paradoxos da edição de 2014 do Festival de Músicas Sagradas de Fez. De certa forma, são tudo coisas que agora se transferem para um “Overtones” em que tem a seu lado Wu Wei, o virtuoso do sheng. Começam com ‘O Canto das Estrelas’. Depois, é como se viessem contar a génese de um mundo que até podia ser o nosso, caso fizéssemos por o merecer.

21 de janeiro de 2017

Anthony Braxton – Miya Masaoka “Duo (DCWM) 2013” (Rogue Art, 2016)



Teve um final de ano particularmente agitado no que diz respeito à edição de discos, Miya Masaoka, com a Innova a lançar o seu “Triangle of Resistance” no exato momento em que este “Duo” surgia nos escaparates e com Ingrid Laubrock a recrutá-la para o estelar “Serpentines” (Intakt). Dir-se-ia uma forma de ir deixando um cartão-de-visita aqui, outro acolá, e de facultar o acesso a uma produção marcada por um conjunto de variáveis perfeitamente inusitado, de atuações interativas com três mil abelhas, filodendros e baratas a composições como “While I Was Walking, I Heard a Sound…”, para três coros, “For Birds, Planes & Cello”, exatamente o que o título diz, e “What is the Sound of Naked Men?”, que transformava o palco numa sala de urgências, com a monitorização eletrocardiográfica e eletroencefalográfica dos intérpretes reprocessada em tempo real e reconvertida em estímulos audiovisuais. Ou seja, não é estranha àquilo que Anthony Braxton costuma referir: “Temos de pensar nestas coisas em termos de escala. E trabalhar em planos pequenos, médios, grandes… E absolutamente ridículos!”, conforme lembra Taylor Ho Bynum no último número da publicação “Sound American”, inteiramente consagrado ao seu antigo professor. Nessa perspetiva, convirá recordar que 2016 foi também o ano em que Braxton viu chegar ao mercado mais uma instalação do seu ciclo operático “Trillium”, um colosso multimédia que envolve cerca de 60 vocalistas e instrumentistas. Talvez, então, por questões de escala, prende a atenção a dimensão virtualmente intimista desta colaboração sujeita aos desígnios da Diamond Curtain Wall Music, o sistema em que Braxton cruza improvisação intuitiva com nebulosas criadas através do software de programação SuperCollider. Não só pelos diálogos que se estabelecem entre o koto de 21 cordas dela e os saxofones dele, mas sobretudo pela forma quase ambiental em que documenta fenómenos acústicos e eletrónicos em reação permanente uns aos outros. O resultado é visceral e fascinante.

New Orleans Funk Vol. 4: Voodoo Fire in New Orleans 1951-1977 (Soul Jazz, 2016)



Estávamos em 2000. A Soul Jazz tinha agradado aos mais variados palatos através de “Nu Yorica!”, “Chicano Power!” e “100% Dynamite!” e tentava a mão no tempero de Nova Orleães com “New Orleans Funk”. Os movimentos da editora inglesa eram ao mesmo tempo prospetivos e introspetivos e quanto mais os seus responsáveis se aventuravam para fora de Londres mais revelavam o que lhes ia no íntimo, evidenciando uma subjetividade da qual, em rigor, nunca se livraram. De certa forma, encaravam o resultado das suas investigações com o mesmo tipo de admiração com que Darwin havia olhado para as Galápagos, quando, impressionado pelo número de espécies autóctones do arquipélago, concluía que “ficamos confrontados com aquele grande facto – o mistério dos mistérios – que foi a primeira aparição de novos seres nesta terra”. A cada coletânea, também a Soul Jazz se interessava por aquilo que na história da música dava mostras de pertencer a estirpes evolutivas excecionais. E, como o famoso escritor e viajante, também a chancela fundada por Stuart Baker caía na tentação de descortinar leis universais em tudo o que observava. É um dos defeitos de que este quarto capítulo consagrado ao funk da maior cidade do Luisiana não se safa, com grande parte da informação abrangida pelo livreto de 40 páginas que o acompanha a provar-se inteiramente irrelevante para o que se propõe. Aliás, em vez deste guisado de autodidatismo regado a ciências humanas, teria sido melhor proceder com coerência face ao sugerido em subtítulo, prestar muita atenção ao modo como, por falar em Darwin, ‘The Monkey’, de Dave Bartholomew, contesta o conceito de seleção natural e abraçar em definitivo a teoria de que em Nova Orleães interessam mais as ciências ocultas que as exatas. Seja como for, tal como nos ensaios anteriores, pense-se no funk de “New Orleans Funk” como na pedra da Sopa da Pedra e – de Chocolate Milk ao Eldridge Holmes de ‘Pop, Popcorn Children’ – logo se encontrará o ingrediente certo para qualquer barriga.

14 de janeiro de 2017

Dre Hocevar “Transcendental Within the Sphere of Indivisible Remainder” (Clean Feed, 2016)



A música parece correr de si em estado líquido – com “Coding of Evidentiality”, “Collective Effervescence” e, agora”, “Transcendental Within the Sphere of Indivisible Remainder” a saírem na Clean Feed em pouco mais de ano e meio – e com ela um sem-fim de inquietações, em que a maior, neste contexto, será tão antiga quanto o “Génesis”: que trata do som essencialmente sujeito à ação dos sentidos. Isto é, de acordo com aquele célebre postulado de Berio, que se define mais pelas atitudes que conjuga do que por outra coisa qualquer. Nessa perspetiva, Dre Hocevar dá mostras de privilegiar uma questão muito simples: o que se deixa de fora quando se recorre à linguagem musical para codificar impulsos retóricos? Trata-se de uma questão inacabada. Daí, quiçá, este título, que parece aludir a Lacan por via de Zizek. Ou seja, esta peça do baterista e compositor esloveno aponta para uma origem obscura, profunda, fecunda mas, no limite, absurda. Aquela que acumula todas as tensões entre desígnio e desejo. 

Tem, portanto, muito de refractário, não obstante residir no próprio âmago da expressão artística. Comparada com uma versão colocada no YouTube há coisa de um ano, aliás, a presente execução é mais alarmante pela inclusão de Sam Pluta (eletrónica em tempo real e processamento de sinais) e pela transferência de Zack Clarke do piano para o sintetizador, pela óbvia razão que combina elementos, apesar de tudo, e independentemente das técnicas utilizadas, mais tradicionais (a trompete de Aaron Larson Tevis, os saxofones de Bryan Qu e Mette Rasmussen, o piano de Jeremy Corren, o violoncelo de Lester St. Louis e o contrabaixo de Henry Fraser) com essoutros que, aqui, são capazes de invocar o perigo potencial da “singularidade tecnológica” de que falava von Neumann. São cerca de 50 minutos em que o conjunto de nove instrumentos ilude mecânicas vulgares e especula sobre os limites do cânone, da compreensão, do conhecido, da construção cultural. Minutos intensos, intrigantes, implacáveis.