14 de janeiro de 2017

Mozart: Piano concertos Nos. 17 & 25 (Decca, 2016)



Na sua biografia de Mozart, a propósito dos concertos para piano estreados por assinatura, em Viena, entre 1782 e 1786, falava Maynard Solomon da afinidade do compositor e intérprete com o seu público, ao qual era assim concedida “a oportunidade de testemunhar a transformação e o aperfeiçoamento de um género musical maior”. Se não é desta que se apaga em definitivo de uma gravação ao vivo na sala a bactéria da tosse convulsa e aquela espécie de murmulho inconfundível que só 2000 pessoas sentadas muito quietas em conjunto conseguem produzir, a verdade é que, com a devida distância, não se vislumbra outra reação no auditório do Severance Hall, em Cleveland, ao longo do ciclo de Mitsuko Uchida que esta nova edição vem dar por terminado. Cá está Mozart no seu estado natural, em partes iguais imoderado e comedido, de um momento ao outro tão submisso ao mais pormenorizado plano de trabalho quão dado ao improviso, capaz de exprimir o todo pela parte e a parte pelo todo por intermédio de estruturas ocasionalmente tão complexas que honrar-lhes o fluxo melódico está ao nível do milagre que terá levado Moisés a fazer brotar água de uma rocha. 

Um Mozart que se preparava, também, para estender o tapete ao bel canto, facto que a pianista mantém presente e a que em absoluto se entrega, de certa forma contrariando a tendência de o dirigir absortamente, como que sob o efeito de um feitiço. Torna-o evidente, desta feita, logo aos primeiros compassos do “Concerto para Piano nº 17”, em Sol maior, K. 453, ao tratar a meia dúzia de temas iniciais como árias e como as coisas mais extraordinárias que um ilusionista pode retirar da cartola. Aliás, na fase de exposição do Allegro leva um motivo romântico ao ponto de rebuçado, por exemplo, e naquele momento da recapitulação em que o solista, com um trilo, se eclipsa, abrindo caminho à secção orquestral que conduzirá à cadenza, traz à memória uma noiva a lançar ao ar o buquê de casamento. Aí, temos a Uchida que ilustra como poucos (como Haebler, Haskil, Brendel ou João Pires) a graça, a clareza e o charme que esta música articula tão bem. Da mesma maneira, há instantes no “Concerto para Piano nº 25”, em Dó maior, K. 503, que não traem aquilo que Mozart disse um dia: que equilibrava o muito fácil com o muito difícil. Ouça-se este Allegro maestoso e ter-se-á a sinopse de uma ópera, com tudo no sítio certo e nas proporções corretas. Uchida toca Mozart como Marie Kondo arruma a casa, com atenção ao detalhe mas sem contemplar o supérfluo.

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