29 de setembro de 2017

Kaja Draksler Octet “Gledalec” (Clean Feed, 2017)


De modo inesperado, logo a abrir, este “Gledalec” recorre a um salmo da altura da contrarreforma: “Mirabile mysterium”, de Jacobus Gallus, compositor oriundo do ducado Habsburgo de Carníola, na atual Eslovénia, cujo primeiro volume de motetos foi publicado em 1586 e que, aqui, por intermédio de um acentuado cromatismo, se diria evocar a tensão subjacente a versículos que assinalam a unidade das naturezas divina e humana: “O que era permanece, o que não era assume, sem sofrer mistura ou divisão”. Trata-se de uma escolha eminentemente dramática – Kaja Draksler, pianista, compositora e improvisadora, a cometer a audácia de sugerir que na vida se pode ser mais do que uma coisa de cada vez sem se ver diminuído por nenhuma delas. Sublinha-o sem demoras, ao estender a antífona renascentista até ‘Births’, um original que adapta “Los nacimientos”, de Pablo Neruda – uma estrada de areia batida robustecida a asfalto. Está, então, e como escreveu Hernán Loyola acerca do chileno, dedicada à “história da consciência humana no seu processo de integração”, isto é, ao estudo “da sua origem, da sua incorporação no mundo, do seu vínculo com a natureza, com os objetos e com a cultura”. 

Talvez por isso, em declarações reproduzidas na folha de sala que apresenta o seu concerto de hoje na Culturgest, em Lisboa, venha dizer que não pensou “em termos de estilos, mas de valores musicais”, que sentiu que “havia aspectos que faltavam ao jazz e à música clássica (…). E como juntei músicos que vêm de diferentes origens, destinei-lhes materiais que pudessem iluminar os seus respetivos talentos”. De facto, no jazz, com uma cantora islandesa e outra letã, com uma saxofonista argentina, um contrabaixista belga, um violinista romeno e um par de multi-instrumentistas holandeses, este seu octeto é o mais internacional desde o de “United Notions”, de Toshiko Akiyoshi. Traz também poemas de Andriana Minou – num, ouve-se: “Até que o passado deixe de o ser”. Melhor cartão-de-visita para esta música não há.

Afonso X: Cantigas de Santa Maria (re. Alia Vox, 2017)


Pedia com instância, em testamento, Afonso X, o Sábio: “Que todos os livros de cantares de louvor a Santa Maria permaneçam na mesma igreja onde o nosso corpo for sepultado”. Não foi bem assim, como se sabe. Nem se pode considerar que a posteridade da sua singularíssima coleção tenha sido assegurada. Ainda hoje, aliás, não tem muito por onde escolher, quem ande à cata de uma gravação representativa das Cantigas, esgotados que estão os títulos que lhes consagraram Schola Cantorum Basiliensis (por sinal, o primeiro contacto fonográfico de Montserrat Figueras com o repertório), Alla Francesca, Micrologus, Esther Lamandier, Obsidienne, Sequentia, Ensemble Gilles Binchois ou Clemencic Consort. Por isso, em boa hora se vê reeditado por Jordi Savall este emblemático registo, captado em 1993, na Colegiada de Cardona (com a acústica da sua nave central, de quase vinte metros, a exigir crédito na ficha técnica), e pouco depois lançado na Astrée.

Com Figueras (e Mercedes Hernández, por exemplo) na voz e com instrumentistas como Pedro Memelsdorff (Mala Punica), Robert Crawford Young (Ferrara Ensemble), Andrew Lawrence-King (Harp Consort), Alfredo Bernardini (Zefiro), Guido Morini (Accordone) e Markus Tapio (Daedelus), trata-se de um período em estado de graça para a Capella Reial de Catalunya e para o Hespèrion XX, em que as práticas musicais mais especulativas se iam tornando realidade, tomo a tomo, e em que o universalismo de Savall se mostrava francamente flexível e de modo algum contrariado pelos vestígios de provincianismo que nas suas escolhas se detetavam. Até porque, ao jeito de Afonso X, o maestro catalão parece saber que o moralismo não implica forçosamente a homogeneização de diferentes constituintes regionais. Disso mesmo testemunho, esta sua visão do culto mariano alfonsino, que vai do aulido paralitúrgico e dos ais devocionais à algazarra épica, fez, e faz, história.

23 de setembro de 2017

Fred Hersch “Open Book” (Palmetto, 2017)


Ao jeito de Caetano Veloso, que há 20 anos fazia chegar às lojas um CD chamado “Livro” no momento exato em que publicava as suas memórias, também este “Open Book” concorre com o lançamento do autobiográfico “Good Things Happen Slowly: A Life In and Out of Jazz”. Mas há mais: Hersch regressou na semana passada ao programa do Jazz at Lincoln Center com “Leaves of Grass”, o espetáculo em que Kurt Elling e Kate McGarry dão voz à sua adaptação de poemas de Walt Whitman (nomeadamente àquele que começa por “Celebro-me e canto-me/ E aquilo que assumo tu deves assumir/ Pois cada átomo que a mim pertence a ti pertence também”), e prepara-se a edição de “The Ballad of Fred Hersch”, o documentário de Charlotte Lagarde e Carrie Lozano consagrado à sua vida em ambulatório desde que contraiu o vírus do HIV (parte “Silverlake Life: The View from Here”, sem o terrível e fatal desenlace, parte ‘Medici’, o terceiro capítulo de “Caro diario”, de Nanni Moretti, tivesse sido Moretti pianista de jazz). 

Tudo isto, bem como o título deste seu novo álbum, contribui para uma certa ideia de transparência, ou pelo menos de revelação, que também no seu caso poderá dever ao poema “Queer”, de Charles Bidart: “Para cada jovem gay que viveu a adolescência/ Na América dos anos quarenta ou cinquenta/ O dilema principal, crucial/ Permanente e constante é a saída do armário – ou não/ Ou não/ Ou não/ Ou não”. Oh, sim, diria Hersch, e mais ainda num meio artístico alimentado a testosterona, não obstante de presumida liberdade, e pese embora a sua experiência tardia (nasceu em 1955). Aliás, pelo que tem dito ao longo dos anos, naquele tempo, para o bem e para o mal, cruzar-se no circuito do jazz com um homossexual deveria ser parecido com o complexo de emoções que toma conta dos mutantes dos X-Men assim que se apercebem que há mais gente igual a si no mundo. Agora, há muito que Hersch saiu do armário, claro. Mas talvez seja verdade que esse rito de passagem nunca se traduziu tão bem, com Hersch tão solto e ao mesmo tempo tão só, ora espontâneo, ora difícil de entender (escutem-se os 20 minutos do algo grimmiano ‘Through the Forest”), invulnerável quando vacila, seguro quando se mostra mais sensível. Ouvindo-o, pensa-se mais uma vez em Whitman, que escreveu: “Nunca haverá mais perfeição do que agora”.

"Pop Makossa: The Invasive Dance Beat Of Cameroon, 1976-1984" (Analog Africa, 2017)


Em meados de 1975 “o disco sound explodiu a sério”, conta James Brown na sua autobiografia. “Era uma simplificação de muito daquilo que eu andava a fazer, ou pelo menos daquilo que eles pensavam que eu andava a fazer. Mas o disco é só um pequeno aspecto do funk. É o final da canção, a parte repetitiva, a malha”, esclarecia. Depois, se fosse em banda desenhada, rematava com um daquelas frases que estão mesmo a pedir um Ba-Dum-Tss num balão: “Aquilo não passa da superfície. É que eu ensinei-lhes tudo o que sabem mas não tudo o que sei.” Perguntassem-lhe o que achava do primeiro single africano – e, já agora, o primeiro single de disco sound – a entrar no Top40 norte-americano (‘Soul Makossa’, de Manu Dibango, em 1973, muito à custa do proselitismo de David Mancuso na discoteca Loft) e é provável que Brown declarasse algo do género. Aliás, nem se esperaria outra coisa. Quer dizer, nas batalhas de influência cultural, para se referir à relação entre a sua música e a do resto do mundo, que considerava hegemónica, não se imagina o ‘Padrinho da Soul’ a reconhecer, como Horácio, em Roma, que a Grécia conquistada conquistou o seu conquistador. Provou-o, em 1975, ao gravar ‘Hustle!!! (Dead on It)’, uma canção tão à vontade entre os porto-riquenhos do Bronx, em Nova Iorque, quanto por entre os camaroneses do bairro de Château Rouge, em Paris. Verdade seja dita, em relação a estes últimos, quiçá demasiado à vontade. Um deles, o compositor e intérprete André-Marie Tala (por sinal, um protegido de Dibango), ao escutá-la, percebeu tratar-se de um plágio da sua ‘Hot Koti’. Meteu-lhe uma ação em tribunal e ganhou o processo em 1978, sem ressentimentos (“Quem não desejaria ver-se um dia imitado por James Brown?”, interrogava-se numa entrevista de há uns anos a “The Boston Globe”). Nesse particular, Tala teve quase tanta sorte quanto Dibango, que em 80 e picos foi compensado num acordo extrajudicial por Michael Jackson (basta pôr a tocar ‘Soul Makossa’ e ‘Wanna Be Startin’ Somethin’’, o tema de abertura de “Thriller”). Ora exogâmicos, ora endogâmicos, são enlaces absolutamente cruciais para o entendimento do que se escuta neste “Pop Makossa”, com os obscuros Bernard Ntone, Olinga Gaston ou Nkodo Sitony, a par dos mais conhecidos Bill Loko, Pasteur Lappé ou Eko Roosevelt, a operar nestas tangentes e a sugerir muitas outras mais, com suficiente confiança em si por saberem que, na altura, alguma da melhor música do planeta não passava sem um cheirinho de makossa para ser feliz.

16 de setembro de 2017

Vijay Iyer Sextet “Far from Over” (ECM, 2017)



Que os tempos não estão para meias-tintas, bem, sabemo-lo das crónicas de Faranaz Keshavjee na revista “Visão”, por exemplo. Aliás, há coisa de uns meses, numa entrevista para o “Diário de Notícias”, e a propósito de Donald Trump, naturalmente, a investigadora levou o seu entrevistador a usar a expressão – e não será preciso vir um diplomado em ciência da cognição explicar-nos em que é que se fundamentava. É um pouco como, no ano passado, quando Vijay Iyer (que, por sinal, tem um doutoramento em ciências cognitivas) dizia a “The New Yorker” que nunca tinha tocado no Village Vanguard (entretanto já tocou, em maio) e que a “História do jazz tinha músicos brancos e músicos negros, mas não [muitos] castanhos”. O quociente entre o número de casos favoráveis à eleição de um Presidente norte-americano “de cor” (como Iyer tem vindo a falar acerca do tom da sua pele) e o número total de casos possíveis, então, parecia um obstáculo estatístico intransponível até Barack Obama lhe passar por cima, uma perna de cada vez, com as Pointer Sisters de ‘Yes We Can Can’ a construírem-lhe uma pista de dança no imaginário.

Uma das reações de Iyer a essa peregrina eleição, em 2008, foi compor ‘Far from Over’, uma peça feita à medida do antigo grito de guerra da FRELIMO (“A Luta Continua”) e dos instintos retóricos do eleito. Dez anos depois, até Hillary Clinton o percebia: “A luta contra o racismo [neste país] está longe de ter terminado”, declarava, em abril de 2016, numa reunião com a Rede de Ação Nacional, de Al Sharpton. Tudo isto, portanto, antes das manifestações em Charlottesville terem posto a maioria dos políticos do país a discutir o assunto como os anúncios televisivos a detergentes de roupa falam das nódoas difíceis. Noutra coisa não pensará Iyer, quando, em notas de apresentação deste seu disco, refere que a “tomada de consciência a que a música obriga” é, hoje, em “tempos de tanta e tão feroz precariedade”, “mais crucial”. Por isso, nos materiais de promoção da editora, fala nestes termos: “Há uma espécie de ato de resistência nesta música – uma ênfase na dignidade e na compaixão, uma recusa em permitir que nos silenciem. Mas, ao mesmo tempo, ela possui uma qualidade de procura, ela aspira a qualquer coisa [melhor] – que é basicamente a estética do blues tornada abstrata e incorporada pelos vários instrumentistas”, conclui. Depois refere possibilidades como “desafio e coesão” ou “alegria e perigo”. Enfim, diria Dickens que vai da “primavera da esperança” ao “inverno do desespero”, e, seja como for, está saturado de significantes.

Daí, quiçá, recorrer ao sexteto – a formação de “Kind of Blue” (Miles Davis), claro, mas também a dos Jazz Messengers, de Art Blakey, a partir de 1961 (embora aqui não haja trombone), a de “Point of Departure” (Andrew Hill) ou, já agora, levando as suas palavras à letra, a de “The Blues and the Abstract Truth” (Oliver Nelson), em cujas águas territoriais, ora agitadas, ora abonançadas, parece navegar. Consigo, em piano acústico e elétrico, leva Graham Haynes (em corneta, fliscorne e eletrónica), Steve Lehman (saxofone alto), Mark Shim (saxofone tenor), Stephan Crump (contrabaixo) e Tyshawn Sorey (bateria), e o resultado da expedição até à fonte do cânone não possui nenhuma neutralidade académica. Pelo contrário, Iyer não toca ‘O Povo Unido Jamais Será Vencido’ porque, sim, uma e outra vez, a História dá mostras de o contrariar, mas o seu estilo, mais aglutinante que sintético – como quem sugere que, nos Estados-Unidos, o princípio do contacto entre culturas não produziu uma escola nacional –, expõe continuamente as tensões pessoais de que deriva, sem receio de remover materiais do seu contexto.


Ou seja, para si, talvez por estar tão entrelaçada com o momento, por se revelar tão inseparável do real, a improvisação é uma necessidade básica individual, uma forma de intervir, não só uma reação à injustiça – verdade seja dita, em respeito a conteúdo, não haverá Presidente mais dado à improvisação do que Trump. No livreto do CD, dirigir-se-ão a ele estas palavras: “À medida que o arco da História avança e recua, há um facto que se mantém: em termos locais ou globais, a luta pela igualdade e pelos direitos humanos mais básicos está longe de acabar. Esperamos que esta música reflita essa verdade (…). E que lhe sobreviva.” Vale o que vale, vindo daquele que a “Downbeat” por três vezes considerou “Artista do Ano”, licenciado em Ciências Exatas (Yale), mestre em Física (Berkeley) e professor universitário (Harvard). E, de facto, face a este Executivo, melhor resposta que um conjunto de temas tão ancorado no coletivo não se vislumbra, não obstante Lehman e Shim solarem como quem não admite regulamentação nos mercados, independentemente da eletrónica de Haynes sugerir aquele tipo de futuro distópico que conduzirá, um gadget de cada vez, à singularidade tecnológica de John Von Neumann ou a despeito de um par de peças tão evasivas que se diriam influenciadas pelo movimento retrógrado aparente de Mercúrio. Não interessa – os tempos não estão para meias-tintas. E Vijay acabou de traçar uma linha na areia.