16 de setembro de 2017

Vijay Iyer Sextet “Far from Over” (ECM, 2017)



Que os tempos não estão para meias-tintas, bem, sabemo-lo das crónicas de Faranaz Keshavjee na revista “Visão”, por exemplo. Aliás, há coisa de uns meses, numa entrevista para o “Diário de Notícias”, e a propósito de Donald Trump, naturalmente, a investigadora levou o seu entrevistador a usar a expressão – e não será preciso vir um diplomado em ciência da cognição explicar-nos em que é que se fundamentava. É um pouco como, no ano passado, quando Vijay Iyer (que, por sinal, tem um doutoramento em ciências cognitivas) dizia a “The New Yorker” que nunca tinha tocado no Village Vanguard (entretanto já tocou, em maio) e que a “História do jazz tinha músicos brancos e músicos negros, mas não [muitos] castanhos”. O quociente entre o número de casos favoráveis à eleição de um Presidente norte-americano “de cor” (como Iyer tem vindo a falar acerca do tom da sua pele) e o número total de casos possíveis, então, parecia um obstáculo estatístico intransponível até Barack Obama lhe passar por cima, uma perna de cada vez, com as Pointer Sisters de ‘Yes We Can Can’ a construírem-lhe uma pista de dança no imaginário.

Uma das reações de Iyer a essa peregrina eleição, em 2008, foi compor ‘Far from Over’, uma peça feita à medida do antigo grito de guerra da FRELIMO (“A Luta Continua”) e dos instintos retóricos do eleito. Dez anos depois, até Hillary Clinton o percebia: “A luta contra o racismo [neste país] está longe de ter terminado”, declarava, em abril de 2016, numa reunião com a Rede de Ação Nacional, de Al Sharpton. Tudo isto, portanto, antes das manifestações em Charlottesville terem posto a maioria dos políticos do país a discutir o assunto como os anúncios televisivos a detergentes de roupa falam das nódoas difíceis. Noutra coisa não pensará Iyer, quando, em notas de apresentação deste seu disco, refere que a “tomada de consciência a que a música obriga” é, hoje, em “tempos de tanta e tão feroz precariedade”, “mais crucial”. Por isso, nos materiais de promoção da editora, fala nestes termos: “Há uma espécie de ato de resistência nesta música – uma ênfase na dignidade e na compaixão, uma recusa em permitir que nos silenciem. Mas, ao mesmo tempo, ela possui uma qualidade de procura, ela aspira a qualquer coisa [melhor] – que é basicamente a estética do blues tornada abstrata e incorporada pelos vários instrumentistas”, conclui. Depois refere possibilidades como “desafio e coesão” ou “alegria e perigo”. Enfim, diria Dickens que vai da “primavera da esperança” ao “inverno do desespero”, e, seja como for, está saturado de significantes.

Daí, quiçá, recorrer ao sexteto – a formação de “Kind of Blue” (Miles Davis), claro, mas também a dos Jazz Messengers, de Art Blakey, a partir de 1961 (embora aqui não haja trombone), a de “Point of Departure” (Andrew Hill) ou, já agora, levando as suas palavras à letra, a de “The Blues and the Abstract Truth” (Oliver Nelson), em cujas águas territoriais, ora agitadas, ora abonançadas, parece navegar. Consigo, em piano acústico e elétrico, leva Graham Haynes (em corneta, fliscorne e eletrónica), Steve Lehman (saxofone alto), Mark Shim (saxofone tenor), Stephan Crump (contrabaixo) e Tyshawn Sorey (bateria), e o resultado da expedição até à fonte do cânone não possui nenhuma neutralidade académica. Pelo contrário, Iyer não toca ‘O Povo Unido Jamais Será Vencido’ porque, sim, uma e outra vez, a História dá mostras de o contrariar, mas o seu estilo, mais aglutinante que sintético – como quem sugere que, nos Estados-Unidos, o princípio do contacto entre culturas não produziu uma escola nacional –, expõe continuamente as tensões pessoais de que deriva, sem receio de remover materiais do seu contexto.


Ou seja, para si, talvez por estar tão entrelaçada com o momento, por se revelar tão inseparável do real, a improvisação é uma necessidade básica individual, uma forma de intervir, não só uma reação à injustiça – verdade seja dita, em respeito a conteúdo, não haverá Presidente mais dado à improvisação do que Trump. No livreto do CD, dirigir-se-ão a ele estas palavras: “À medida que o arco da História avança e recua, há um facto que se mantém: em termos locais ou globais, a luta pela igualdade e pelos direitos humanos mais básicos está longe de acabar. Esperamos que esta música reflita essa verdade (…). E que lhe sobreviva.” Vale o que vale, vindo daquele que a “Downbeat” por três vezes considerou “Artista do Ano”, licenciado em Ciências Exatas (Yale), mestre em Física (Berkeley) e professor universitário (Harvard). E, de facto, face a este Executivo, melhor resposta que um conjunto de temas tão ancorado no coletivo não se vislumbra, não obstante Lehman e Shim solarem como quem não admite regulamentação nos mercados, independentemente da eletrónica de Haynes sugerir aquele tipo de futuro distópico que conduzirá, um gadget de cada vez, à singularidade tecnológica de John Von Neumann ou a despeito de um par de peças tão evasivas que se diriam influenciadas pelo movimento retrógrado aparente de Mercúrio. Não interessa – os tempos não estão para meias-tintas. E Vijay acabou de traçar uma linha na areia.

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