28 de outubro de 2017

Beethoven: Sonatas; 32 Variações em Dó menor (Deutsche Grammophon, 2017)



Como tantos virtuosos, também Evgeny Kissin dá mostras de proceder de acordo com os ditames da Terapia Racional Emotiva e Comportamental desenvolvida por Albert Ellis. Desta feita, ao que parece, escrevendo um livro de modo a prolongar a sua curta tolerância à frustração: “Dei ao longo da minha vida variadíssimas entrevistas; e nessas entrevistas foram-me com frequência colocadas as mesmas questões. Esta é uma tentativa de lhes dar resposta”, confessa ele, em “Memoirs and Reflections” (W&N, 2017). Que não apenas no prefácio, mantém-se algo prosaico, o tom da autobiografia, para não dizer presumido. Não obstante, e como não poderia deixar de ser, revela a espaços uma enorme perspicácia e permite apreciar mais aprofundadamente o percurso deste menino-prodígio, pianista desde os dois anos de idade. Aliás, por vezes, e de forma igualmente inevitável, a impressão que fica é que o impulso autobiográfico atua tanto em zonas sensíveis da infância quanto da maturidade – ou seja, que serve para suprir carências. 

Mas, aos 46 anos, Kissin apresenta-se ao mundo como um homem resolvido: recém-casado, de regresso à Deutsche Grammophon (um quarto de século depois, precisamente como quem faz as pazes com o período mais impressionável do seu passado) e reconciliado com Beethoven (“Nunca senti que Beethoven me fosse menos próximo do que Chopin, mas precisei de muito tempo para tocar a sua música a um nível, digamos, adequado, de maneira a soltar-me nela enquanto intérprete”, diz). Agora, calcula-se que esta edição sirva para celebrar a união entre afinidade e habilidade. Nem sempre nas melhores condições técnicas, entre 2006 e 2016, são gravações feitas em recitais delineados à medida da disponibilidade metafísica das elites de Seul, Nova Iorque, Viena ou Verbier: da Sonata Nº 3, com um imaginativo Adágio em que se compensa uma incogitável falta de poesia, à Nº 14 (“Ao luar”, atmosférica e evocativa); da Nº 23 (“Appassionata”, eruptiva e eloquente) à Nº 26 (uma caprichosa “Les adieux”) e à Nº 32 (em partes iguais aliciante e alienante). Mas é em “32 Variações em Dó menor”, curiosamente, que Kissin se redime em definitivo, pondo fim à repressão do melhor Beethoven que havia em si.

Bill Evans “Another Time: The Hilversum Concert” (Resonance, 2017)



É uma editora dada à hipérbole, a Resonance. “Este não é um álbum qualquer”, escrevia Zev Feldman, seu produtor, em fevereiro de 2016, a propósito de “Some Other Time: The Lost Session from the Black Forest”. Trata-se de um testemunho “notável de um período pouco documentado na carreira de um dos ícones do jazz”, continuava, “um grande álbum que obrigará a reescrever os livros de História”. Resumindo: “É o único disco gravado em estúdio por Bill Evans com Eddie Gómez e Jack DeJohnette”, uma frase que dava a volta ao único registo oficial do trio, “Bill Evans at the Montreux Jazz Festival”. Um ano depois, em fevereiro de 2017, portanto, Feldman estava à cata de palavras: “O Marc Myers [jornalista, crítico de jazz e autor das notas de apresentação de “Some Other Time”] escreveu-me a dizer que foi contactado por um entusiasta holandês que nos queria alertar para o facto de haver uma outra gravação deste trio captada a 22 de junho de 1968 nos estúdios da emissora nacional, em Hilversum”.

Pense-se em Jeffrey “The Dude” Lebowski no banco de trás de uma limusina a explicar-se perante Jeffrey “The Big” Lebowski que se terá uma versão mais abreviada da coisa: “Vieram a lume umas merdas novas, pá!” Oportunidade, então, para a Resonance elevar ainda mais a fasquia: “É tão importante quanto o trio que Evans liderou em 1961, com Scott LaFaro e Paul Motian”, diz Myers. Dificilmente. Parece ignorar-se que, nisto, mais vale agradecer com a verdade, que ofender com a lisonja. E havia uma forma mais humilde de dizer ao que se vinha. Bastava seguir à boleia de uma famosa frase de Evans, impressa na contracapa de “Kind of Blue”, em que se sugeria uma equivalência entre a técnica de pintura Sumi-e, no Japão, e a improvisação, e dizer que aqui se procedia de acordo com a visão do mundo Wabi-sabi, ancorada na estética do belo que é “imperfeito, impermanente e incompleto”. Aliás, a mais-valia é exatamente essa: perante a inadequação de DeJohnette e a inibição de Gómez, como no Kintsugi (o restauro a ouro de cerâmica lascada), eis Evans a reparar delicadamente peças partidas – em paz com o destino.

21 de outubro de 2017

Brahms: Peças Para Piano (Decca, 2017)


A elaborar notas de apresentação para este disco, pede-lhe Misha Donat para sintetizar o que significa, ao certo, voltar à “Sonata para Piano Nº 3 em Fá menor”, Op. 5, de Johannes Brahms (1833-1897), e Nelson Freire, que a gravou pela primeira vez há 50 anos, sai-se com uma platitude zen: “É como quando você vê de longe uma montanha imensa, e, depois, ao se aproximar, começa a reparar nos rios e nas árvores que a constituem.” Corretíssimo. “Primeiro há uma montanha / Depois não há montanha nenhuma / Depois há”, cantava Donovan, em ‘There Is a Mountain’, precisamente em 1967, dando seguimento à formulação com que Qingyuan Weixin (século IX) resumia a nossa relação com a natureza das coisas: “O primeiro estágio é ver a montanha como montanha e o rio como rio; o segundo, ver a montanha não como montanha e o rio não como rio; e o terceiro, ver a montanha ainda como uma montanha e o rio ainda como um rio.” Nada disto teria muita importância, claro, não fosse o facto de lembrar um axioma comum a Brahms (pelo menos, ao Brahms crepuscular das Peças e Fantasias para piano, de 1892 e 1893), a Freire e, pelos vistos, a budistas: que há uma etapa na vida a que só tem acesso quem já passou pela experiência do desapego. 

Seria a fase do eremita errante, no hinduísmo. O que traz à memória a entrevista de Freire a “O Globo”, pouco antes de completar 70 anos (entretanto fez 73, na quarta-feira passada): “[A minha vida] É de casa para o aeroporto. Do aeroporto para casa.” Brincadeirinha, como diria um brasileiro. A reter alguma coisa da entrevista, seria isto: “Tenho medo da degeneração física. Idade assusta. Mas a gente nunca sabe, também. Medo de morrer, não tenho. A sensação que incomoda é do corte.” Ou quando Debora Ghivelder, a jornalista, lhe pergunta se acredita na vida depois da morte, e ele diz: “Acredito. Mas não nesse negócio de que existe isso e aquilo. Trata-se de uma incógnita. É isso, eu acredito na incógnita”. Escute-se, aqui, a sonata, como é óbvio, mas fundamentalmente o conjunto de Intermezzi extraídos aos opúsculos 116, 117, 118 e 119, e ter-se-á a medida exata do quanto crê: tudo é límpido e lídimo e livre. Antes, só Walter Klien e Radu Lupu o abraçaram assim.

Michaël Attias Quartet “Nerve Dance” (Clean Feed, 2017)



Com uma lona a cobrir o bronze de Robert E. Lee em Emancipation Park no centro das atenções, e à luz de acontecimentos recentes em Charlottesville, têm-se discutido símbolos afetos à elite agrária e escravocrata que dominou o sul dos Estados Unidos até à Guerra de Secessão. Mas já há um ano, em Houston, se debatia a mudança de nome da Lanier Middle School, batizada em honra do poeta e músico Sidney Lanier, personagem que, por sinal, possui uma biografia curta e curiosa, com passagem fugaz pelo exército confederado (na base da celeuma atual), pela advocacia, pela docência ou pelo fantasioso, disciplina em que, ao longo de 1876, na revista literária “Lippencott’s”, e sem ter posto um só pé no subcontinente, publicou uma série de crónicas de viagem chamada “Esboços da Índia”. Numa, ao descrever os movimentos de uma bailarina, dizia assim: “Reparei que tremia por inteiro e que, não obstante, era capaz de manter um ar de enorme elegância. A sua atuação resumia-se a lânguidas alterações a essa postura e a uma miniatural dança dos nervos do seu corpo.” 

A frase parece feita à medida deste extraordinário “Nerve Dance”, claro, e a verdade é que o disco do quarteto de Attias permanece em diálogo aberto com as ambiguidades que conjuga e com a tensão que o cerca. Numa entrevista a “Jazz Right Now”, o saxofonista diz preferir a música que pressupõe a “democracia do ouvido” e respeitar uma plateia que aceite estar “perante o desconhecido” – ele, que, em 2015, num ensaio, sugeriu que o “improvisador é um completo estranho à música”, pois “a música é revolta”, um “corpo que ensino a dançar ao contrário”. É uma referência a Artaud, a coreográfica expressão, e ao sujeito enquanto identidade inacabada. Em junho, a “JazzTrail”, assumia não ter identidade, no sentido em que não queria “ficar preso a uma certa imagem” de si próprio – queria ir “mais fundo”. Nunca, como aqui, e jamais num momento tão necessário. Ouve-se “Nerve Dance” e sente-se o jazz a rebelar-se contra a tirania das construções identitárias, como um tijolo de lucidez atirado a flash mobs de neonazis em Charlottesville.

14 de outubro de 2017

Rachmaninov: The 4 Piano Concertos; Piano Works (Warner, 2017)


Rachmaninoff não se conseguia fazer entender. Mesmo quando os jornalistas o levavam à trela, perdia-se. Estava desde 1918 em Nova Iorque e quando lhe pediam um comentário acerca do estado de coisas na Rússia, ele, que pertencia à primeira vaga de emigrantes saída da Revolução de Outubro, vacilava: “Vocês não fazem ideia da desesperada saudade que sente um homem sem lar. Aqui, até o ar é diferente.” Prokofiev, outro expatriado, dizia: “Sou russo, isto é, o menos equipado dos homens para o exílio. Vejam os meus compatriotas, espalhados pelo mundo mas intoxicados pelo ar do seu país”. Na altura, dir-se-ia o reflexo de uma tendência natural para a contemplação. “Talvez todo o russo seja uma espécie de eremita”, concluía Rachmaninoff, que, antes de fugir à convivência com os seus, procurava paz e tranquilidade na herdade de Ivanovka, na estepe de Tambov, onde “em vez de um vasto oceano havia campos de trigo e centeio a perder de vista”. Em 2002, numa entrevista concedida a uma publicação alemã, a “Klassik Heute”, perguntavam a Nikolai Lugansky se na sua personalidade identificava alguma dessa melancolia expressa por Rachmaninoff. “Creio que sim”, respondia o pianista. “Está na nossa índole, quiçá em virtude da extensão e escuridão da nossa paisagem.”

Desde que Lugansky toca publicamente Rachmaninoff – e em disco fá-lo desde 1987, tinha então 15 anos – que é nisto que se pensa: que se está perante aquele caso, raro, de um intérprete do compositor que não tem de se compenetrar inteiramente do pensamento alheio ao executar-lhe as obras, como se as tivesse encontrado com domicílio na sua própria intuição, na sua memória, na sua experiência de vida. Confirmando-o, chegou há pouco ao mercado esta imaculada retrospetiva (trazendo a reboque as sinfonias dirigidas por Previn), na qual se destacam os Prelúdios do opúsculo 23, apenas porque Lugansky os planeia tocar hoje ao final da tarde em Lisboa (19h, Gulbenkian). Vêm de antes do desterro, quando o futuro parecia diferente, menos empestado por saudades, mas a melancolia já lá estava, mascarada de outra coisa: “Que bem que ele ouve o silêncio”, disse Gorki, quando os escutou pela primeira vez. Podia estar a falar de Lugansky.