27 de janeiro de 2018

Ella Fitzgerald “Ella at Zardi’s” (Verve, 2017)



Cantava e o mundo parecia um lugar livre de perigo. Nessa medida, ao invés de uma intérprete como Billie Holiday, digamos, em que tudo era complicadamente extravagante e contraditório, Ella Fitzgerald conseguia a todo o custo combinar compaixão com clareza moral e criatividade com credibilidade. Claro que, com o passar dos anos, quando continuava a fazer com sílabas o que praticantes de ginástica rítmica faziam com arco, bola ou fita, veio precisamente a ser criticada pelo grau de confiança que exibia. Mas mesmo em final de carreira refreava um refrão e aparentava desacelerar o rigor mortis no repertório. Em meados do século passado, na Verve, gravou uma série de discos que se revelou uma Arca da Aliança para os grandes livros de canções norte-americanos, principalmente aqueles saídos da pena de Cole Porter, Rodgers & Hart, Irving Berlin, irmãos Gershwin e Harold Harlen – se bem que, antes disso, quando publicou a fotografia aí em baixo, já a “Down Beat” admitia que era “um cliché apelidá-la de maior cantora do mundo”, que a coroa cravejada de diamantes no seu peito era mais que uma mera pregadeira. 

Ella era a ‘rainha do jazz’ (os mais presidencialistas chamavam-na de ‘primeira dama’) e, como tal, não dispensava a sua corte – é ouvi-la, aqui, a 2 de fevereiro de 1956, a acalmar a plateia dizendo que vai atender mais pedidos mas que primeiro quer dedicar ‘A-Tisket, A-Tasket’ a Van Alexander, seu co-autor, “sentado à minha direita, aos Sr. e Sra. MacRae [i.e., ao cantor e ator Gordon MacRae e à sua mulher, Sheila], a Gordon Jenkins [orquestrador]... Credo! O que é que se passa hoje…? Isto está de loucos!” O que terá exclamado meses antes, quando, depois de Marilyn Monroe ter intercedido por si, atuou no clube Mocambo, perante os rostos embevecidos de Frank Sinatra, Judy Garland e Eartha Kitt, não se sabe. Seja como for, no Zardi’s Jazzland foi feliz (ia entrar em estúdio ao abrigo de um novo contrato com a editora de Norman Granz e vinha de vencer na justiça um processo por descriminação contra a Pan Am). Estranho é este registo ter ficado 62 anos na prateleira, quiçá à espera do tal mundo livre de perigo. Ainda não o é, longe disso. Mas quando Ella canta, parece.

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