Era noite cerrada e a casa estava escura.
Não fazia ideia onde estava a mãe (a arrumar a cozinha, talvez), mas não se
ouvia um pio. Ainda assim, não conseguia pegar no sono. Tinha percebido que o
pai recebia gente na sala de estar e que tinha fechado a porta – o que nem era
a primeira vez. Há muito que estava em pulgas para saber o que se passava lá
dentro. Levantou-se da cama com cuidado, avançou devagar pelo corredor,
aproximou-se com algum receio do buraco da fechadura e contou o que viu desta
maneira: “O meu velho e os colegas dele estavam estendidos nas cadeiras, de
olhos fechados. Adormeceram, pensei. Adormeceram e estão a ter uns sonhos
estranhos, maravilhosos. A divisão estava cheia de fumo branco, de aroma
intenso – quando me chegou ao nariz através da porta fiquei agoniado. Um dos
homens estava com a cabeça para cima e de boca bem aberta, como que a aspirá-lo
aos poucos. Estavam quase num estado de êxtase. A partir dessa noite, voltei a
observar secretamente o meu pai e os seus amigos muitas vezes e fui ficando
cada vez mais impressionado, cada vez mais assustado.” Sob o título “A Trompete
e a Seringa”, este relato circulou na década de 60 pela imprensa
sensacionalista norte-americana, quando poucos queriam saber já do seu autor. O
subtítulo? “Confissões de Chet Baker”.
Se há coisa de que não se pode
acusar Chet Baker é de ter sido um literato. Mas lendo-se esse artigo em que
descreveu a hipotética origem da sua obsessão com drogas é impossível deixar de
se pensar em “Entropia”, um conto de Thomas Pynchon publicado em 1960 na
“Kenyon Review”, uma revista literária, em que os membros de um quarteto de
jazz se munem de marijuana e se dedicam à experiência de tocar um tema do
princípio ao fim sem produzir um único som, tentando inferir o que uns e outros
estão a ouvir nas respetivas cabeças, em que tom, em que andamento, e que tipo
de improvisações fazem. O seu modelo? O quarteto de Gerry Mulligan com Chet
Baker. “Conseguíamos sempre antecipar o que é que o outro ia fazer”, disse
Mulligan sobre a relação. Isto, quando a moderação emocional e dinâmica do som
da trompete de Chet parecia um enigma criado para levar os seus admiradores a
imaginar as razões pelas quais lhes seria vedado o acesso a sentimentos e
reflexões a que desejavam aceder a todo o custo.
Na presente edição, no CD “Chet
Baker-Gerry Mulligan Original Quartet”, também disponível individualmente e em
LP (como todos os discos da caixa, aliás), fica bem retratado esse período em
que Chet, à semelhança de Miles, parecia expressar-se num código de que só ele
possuía a senha. Trata-se de gravações de 1952 e 1953 (envolvendo Bob Whitlock,
Carson Smith, Chico Hamilton e Larry Bunker), ficando de fora as sessões de
“Gerry Mulligan and his Ten-Tette” e as de “Lee Konitz Plays with the Gerry
Mulligan Quartet”. Igualmente indispensável, aqui, é “Chet Baker & Russ
Freeman Quartet”, que inclui as gravações do grupo em 1953 (com Smith e Bunker)
mas também o prodigioso “Quartet: Russ Freeman Chet Baker”, de 1957 (com Leroy
Vinnegar e Shelly Manne), em que Chet toca com uma entrega rara: solto, agressivo
e a transbordar de intuição melódica. Este Chet, influenciado por Dizzy
Gillespie, Kenny Dorham ou Clifford Brown, mas à frente deles todos nas
preferências dos leitores da “Down Beat”, ouve-se ainda em “Chet Baker &
Crew: The Forum Theatre Recordings”, que recupera os temas do LP homónimo de
1956 com um explosivo quinteto de neo-bop
completado por Phil Urso, Bobby Timmons, Jimmy Bond e Peter Littman.
Depois, claro, a coletânea abrange grandes sucessos de Baker como “Chet Baker
& Strings”, de 1954, “Chet Baker Sings”, de 1954 e 1957 (quando foi no
mercado relançado com extras) ou “Sings and Plays with Bud Shank, Russ Freeman
and Strings”, de 1955 – satélites algo artificiais ao planeta do jazz. Como
compensação, no CD “Strings & Ensemble”, este material mais inócuo possui
como complemento “Chet Baker Sextet”, de 1954 (com Bob Brookmeyer, Shank, Smith,
Manne e Freeman), “Chet Baker Ensemble”, do mesmo ano (com Herb Geller, Jack Montrose,
Bob Gordon, Joe Mondragon e Manne), e parte de “Big Band”, de 1957, de que
inexplicavelmente se excluem os temas com Conte Candoli, Frank Rosolino, Bill
Perkins e Art Pepper. A expetativa era que surgissem no volume “Chet Baker
& Art Pepper”, mas debalde – neste, está a sessão no Forum Theatre de julho
de 1956, editada como “The Route”, e, com outra urgência, a ida a estúdio de
agosto de 1956 que resultou em “Playboys”, com arranjos de Jimmy Heath.
Destaque, ainda, para “Chet Baker in New York” (1958) e “Jazz at Ann Arbor” (1955).
Já “For Lovers” traz algumas repetições e discos rotineiros como “It Could
Happen to You” (1958) e “Chet” (1959), enquanto “My Funny Valentine” é
absolutamente redundante no contexto desta antologia.
Foi um período imortalizado pela câmara de William Claxton em capas para
a Pacific Jazz ou fotos de promoção – em “Jazz Seen”, Claxton confessou ter
descoberto o conceito de fotogenia ao ver aparecer do nada o rosto do
trompetista na sua sala escura. Os discos deste “Portrait in Jazz” trazem fotos
suas. As coisas podiam ter ficado por aí, mas, no caso de Chet, escorrega-se sempre
do retrato para a caricatura: a caixa encerra com gravações em Roma e Milão,
entre 1959 e 1962, entregues já à nostalgia, como “Chet Baker Sextet”, ou à
música ligeira, como “Angel Eyes”, o que vai dar ao mesmo. Podia ter-se
resolvido o assunto com o auspicioso “Chet is Back!”, mas é melhor assim, não
fosse o caso de se criarem falsas esperanças: daí em diante, Chet levou uma
existência peripatética, de pátria em pátria, de prisão em prisão, de pedra em
pedra, de perda em perda, até ao dia em que lhe falhou o pé numa varanda do
hotel Prins Hendrik, em Amesterdão. Foi numa sexta-feira treze. Faz amanhã 30
anos.