Em 2005, em declarações a “The Guardian”, Minerva Rodriguez Delgado, a responsável pela divisão internacional da Egrem – Empresa de Grabaciones y Ediciones Musicales, fazia jus ao nome (Minerva era a deusa romana das artes e do comércio) e, ignorando momentaneamente os ensinamentos de “O Capital”, assumia: “Temos de fazer dinheiro!” O contexto, por ocasião do seu 40º aniversário, era o do lançamento no Reino Unido de uma série de antologias da editora estatal cubana, decidida a provar que não tinha tanto bolor quanto as suas congéneres soviética (Melodiya), polaca (Polskie Nagrania), jugoslava (PGP RTB), checa (Supraphon), búlgara (Balkanton) ou romena (Electrecord). Fez-se o negócio, mas não se abandonou a órbita dos nomes que o “Buena Vista Social Club” consagrou – e só com “Nueva Vision: Latin Jazz & Soul from the Cuban Label Egrem”, em 2007, na Sonar Kollektiv, se esgravatou para lá da superfície, produzindo-se o único precedente digno desse nome de “Cuba: Music and Revolution – Culture Clash in Havana Cuba (Experiments in Latin Music 1975-1985, Vol. 1)”, suplemento fonográfico de um livro também organizado por Gilles Peterson e Stuart Baker e com um título igualmente quilométrico, “Cuba: Music and Revolution – Original Album Cover Art of Cuban Music (Record Sleeve Designs of Revolutionary Cuba 1959-90)”. No que concerne a música propriamente dita, em virtude do embargo norte-americano, trata-se do “período do isolacionismo”, mesmo se a presidência de Jimmy Carter tentou promover El Diálogo e se, em 1978, os Irakere tocaram no Carnegie Hall e a Orquesta Aragón no Lincoln Center, num concerto marcado por um atentado à bomba. Por outro lado, como a mais elementar das enciclopédias ilustra – e “The Rough Guide to Cuban Music”, de Philip Sweeney, logo salta à memória –, foi o instante em que “a vanguarda cubana fez a revolução que ninguém ouviu”, quando Irakere, Los Van Van, Grupo Monumental, Grupo de Experimentación Sonora del ICAIC, Emiliano Salvador e Juan-Pablo Torres viraram a música cubana do avesso, nem que fosse para provar o quão se diferenciava da salsa.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
29 de janeiro de 2021
Cuba: Music and Revolution (Soul Jazz, 2020)
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22 de janeiro de 2021
Handel: Suites Pour Clavecin (Mirare, 2020)
Há 300 anos, em Londres, dava-se nas páginas de
“The Daily Courant” com o anúncio de que Handel se via obrigado a publicar
“estas lições, para que o público não fosse exposto a informações incorretas, obtidas
de modo fraudulento”. Parece um tweet
de Donald Trump! Afinal, as pautas que começavam a circular na Holanda em 1720
eram fake news. Ou melhor, essas
“Pièces à un & deux Clavecins composées par Mr. Hendel”, a que certamente se
referia, eram, na realidade, edições piratas dos manuscritos que distribuía
pelos seus alunos, com sequências de acordes e pouco mais. Era seu “dever”,
defendia, “servir uma nação [a Inglaterra] que o agraciava com o mais generoso
dos patrocínios”. Afinal, aí, após uma temporada passada na residência de James
Brydges, 1º Duque de Chandos, e nem que para tal fosse necessário abrir o jogo
e pôr ornatos e um pouquinho mais de carne naqueles esqueletos, o compositor de
“Rinaldo” e futuro diretor artístico de opera
seria na Royal Academy of Music teria que zelar pela sua reputação. Johann Sebastian
Bach, por sinal, mostrar-se-ia agradecido: em Leipzig, meia dúzia de anos
depois, a Allemande da sua “Partita
Nº 2”, em Dó menor, citaria, nota a nota, o início da Allemande da “Suíte Nº3”, em Ré menor, de Handel. Mas, mais
agradecida, ainda, ficaria aquela gente para a qual as suas melodias funcionavam
como um feitiço e uma forma de aceder a um mundo que, mais que longínquo,
parecia, muito pelo contrário, à beira de se concretizar: o Palácio de
Buckingham, o Teatro da Rainha, Marlborough House, Hanover Square, Teatro de
Haymarket, uma nova Londres que só Handel tornaria completa e merecedora da
sensação de segurança, riqueza e privilégio que projetava e, sim, uma Londres
em que não se apagassem por completo das fachadas as marcas daquela forma de
vida caótica e desesperada, anterior à Restauração, que essa gente queria
largar mas de que não se podia dar ao luxo de esquecer. Árias com a esperança
de vida de uma borboleta – que voa até desaparecer, até se extinguir, dissolver
e se tornar ar – e Fugas – com mão esquerda e direita a comportarem-se como se
travassem uma luta há nos e este fosse o seu armistício – sucedem-se sem aviso,
independentemente de normas, de escolas, de Telemann, Couperin ou Scarlatti. Um
grito de liberdade que Hantaï honra como ninguém e que traz à memória o que
Scarlatti, precisamente, terá dito um dia, em Veneza, num baile de máscaras, ao
ouvir Handel a improvisar: “Só pode ser o famoso saxão, ou o diabo.”
8 de janeiro de 2021
Sonny Rollins “Rollins In Holland” (Resonance, 2020)
Após a salva de artilharia dada
por Ornette Coleman em “The Shape of Jazz to Come” e “Change of the Century”, costumava
dizer-se que 1959 tinha sido o ano em que o jazz morreu. Bom, Sonny Rollins,
pelo menos, perdeu a fala. Na altura, ali, quando o sol bate e se firma, quem o
quisesse encontrar teria de procurá-lo na ponte de Williamsburg, longe das salas
de concerto e das lojas de discos, onde ensaiava tardes inteiras, mais ou menos
perdido na multidão. Foi aí que no verão de 1961 com ele se cruzou Ralph
Berton, cronista da “Metronome”, que escreveu: “Quando dei por aquele som, de
repente, nem queria acreditar. Era tão improvável escutá-lo naquele sítio: o sopro
de um mestre!” Na História, o período ficou conhecido como o da sua primeira
sabática, que interrompeu com “The Bridge” (1962). Existiria uma segunda, maior,
mais sujeita a especulações, correspondente à fase do eremita errante, no
hinduísmo, e que o conduziria à Índia – em estúdio, o intervalo entre “East
Broadway Run Down” (1966) e “Next Album” (1972). Mas, na prática, na primavera
de 1967 era preciso ser-se assinante do “Melody Maker” para se dar com ele:
“Não sei como é com intérpretes de música clássica, mas, no meu caso, um músico
de jazz quando entra num clube é avaliado pelo modo em como faz ou não faz
negócio. Isto é, se não estiver a ser bom para a casa, começam logo a olhar
para ele de lado. Se houvesse maneira de tocar sem este tipo de pressão, se o
jazz tivesse outro estatuto, já era uma ajuda.” No continente, promotores
holandeses liam as suas palavras e faziam as malas para ir a correr buscá-lo – mas
seria possível que o responsável por levar gravidade, força de atração, perspetiva,
espaço e tempo a um ponto que nem Einstein equacionou andasse por Inglaterra a tocar
com Ronnie Scott, Stan Tracey, Tony Oxley e Dave Green?
Nos Países Baixos, em 1967, poucos
músicos seriam tão admirados quanto Rollins – um baterista como Han Bennink,
por exemplo, saberia de cor o que, a seu lado, haviam feito Max Roach em
“Saxophone Colossus” (1957), Elvin Jones em “A Night at the ‘Village Vanguard’”
(1957) ou Philly Joe Jones em “Newk’s Time” (1959), e, face a Doug Watkins,
Wilbur Ware ou Oscar Pettiford, o mesmo se aplicaria a um contrabaixista da
estirpe de Ruud Jacobs. De modo crucial, sabiam igualmente o que o saxofonista
fazia a bateristas e contrabaixistas como eles: “O Sonny tinha um timing tão impecável, uma noção rítmica de
tal forma aprimorada, que tocar com ele era como que andar de elevador. Levava-nos
onde fosse preciso, sem esforço algum”, adiantou Bennink a Aidan Levy, o
biógrafo de Rollins. Por seu turno, Jacobs, na mesmíssima conversa (em julho de
2018, após a descoberta das presentes gravações), explicava-se assim:
“Estávamos nervosos. Era normal. Mas mal o Sonny começou a tocar senti como que
um peso a sair-me de cima. E só pensava: Mas que raio está a acontecer? Pois, a
verdade é que a música seguia pelo próprio pé.” De súbito, para um punhado de
sessões, sem um único ensaio, aparecia-lhes à frente o Rollins de “Freedom
Suite” (1958) ou “Our Man in Jazz” (1962), aquele que acendia a lareira com standards mas que quando já não tinha
lenha para queimar começava a partir a mobília aos bocados só para manter a
chama viva – aquele que, a propósito destas atuações, no livreto, lembra que “o
jazz é uma tentativa de chegar ao desconhecido, de olhar para o abismo, de
estabelecer relações espontâneas, intuitivas, honestas, beatíficas… Que é o
sítio onde vive, ligeiramente mais além.” Sabe bem do que fala – afinal, passou
a vida inteira a construir a ponte para lá chegar.
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