"Um infeliz paralisado num quarto de Hotel, naquela astenia física que precede os grandes acontecimentos, vendo televisão sem parar e cheio de barrigose”, escreveu das profundezas Tom Jobim numa carta de Janeiro de 1967, endereçada a Vinicius, a poucos dias de completar 40 anos e a outros tantos de entrar em estúdio com Frank Sinatra. E não se vislumbra que um único filamento do seu corpo tenha deixado de estremecer desde aquela tarde de Dezembro em que no bar Veloso em Ipanema lhe gritaram “Tom, ligação dos Estados Unidos!”, passando-lhe um dos seus letristas, Ray Gilbert, que lhe disse estar com alguém que lhe queria falar. É difícil imaginar a cena, até porque o filme está por fazer, mas supõe-se que Jobim tenha esboçado um reverente, mudo e afirmativo aceno à sugestão de Sinatra (de que iriam gravar juntos no mês seguinte, que o disco sairia na sua editora, que as canções estavam escolhidas e que as orquestrações seriam de Claus Ogerman) e, após ingestão de um indeterminado número de espíritos, executado a única tarefa ao seu alcance: ir para casa fazer as malas.
Sinatra chegou tarde à bossa nova mas foi a tempo de lhe reformar o molde. Esse era, aliás, o único desafio que enfrentava: imprimir a sua marca num distinto repertório que funcionava há anos como um colorido pano de fundo para as excentricidades da cultura popular norte-americana dos anos 60. Na verdade, entre 62 e 63, uma obra-prima como ‘Desafinado’, ainda que apresentada pelo próprio Jobim, soprada por Stan Getz ou Coleman Hawkins ou vibrando nas cordas vocais de Blossom Dearie ou Julie London, repetia pouco mais que a morada do exótico da qual tinham sido projectados cachos de fruta para a cabeça de Carmen Miranda. E qualquer hipótese de dignidade para o género se esfumava sempre que na rádio Eydie Gormé cantava ‘Blame it on the Bossa Nova’ e Elvis se declarava à ‘Bossa Nova Baby’. Por isso Sinatra esperou. E foi preciso a acção de Sérgio Mendes (lançando ‘Mas que Nada’), Walter Wanderley (com ‘Samba de Verão’) ou João Gilberto (conquistando um Grammy com um “Getz/Gilberto” guiado por Tom) para que sentisse a maré a mudar.
À distância de mais de quatro décadas estas gravações não parecem vir do mesmo planeta – quanto mais do mesmo período – que consagrou Beatles, Doors, Cream, Stones, Who ou Hendrix. O que se encontra nos dez temas de “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim” é o eminentemente novo transmitido por aquele que representa o firmemente antigo. E que essa colisão de valores seja tão subtil, definitiva e afectada por um agente de nostalgia, imprime-lhe um carácter único num contexto musical profundamente revolucionário. Isso, e a confirmação a cada ano que passou que aí se ouvia o estertor do maior cantor do século. Descontando o assassínio da poesia e da métrica (o balanço da ‘Garota de Ipanema’ na silabação de “olha que coisa mais linda mais cheia de graça” bocejado num “tall and tan and young and lovely”, por exemplo), tudo aqui é gracioso e paradigmático. De tal ordem que se repetiu a dose. Mas um “Sinatra-Jobim” com mão sinfónica de Eumir Deodato nos arranjos, gravado e planeado dois anos (que mais parecem duas vidas) depois, nunca haveria de, por ordem de ‘A Voz’, ver integralmente, e até hoje, a luz do dia – as suas 10 canções saíram a conta-gotas em “Sinatra & Company” (71), “Portrait of Sinatra” (77) e “Complete Reprise Studio Recordings” (95). Tudo porque mudou o mundo e porque nessa altura – também por culpa de Sinatra – já a bossa nova tinha morrido e ressuscitado em cruzeiros, casinos, elevadores e esplanadas. Triste é dizer pouco.