Há quase 15 anos que Daniel Melingo inventaria o apocalipse do tango. Mais concretamente, desde “Tangos Bajos”, o seu primeiro ensaio no género, em 1998, que a canção portenha se tornou na exemplar contingência de um projecto específico: cantar os marginalizados, os desapossados, os amores falhados, mas também os idealistas, os fantasistas, os lunáticos apaixonados. Nessa perspectiva, encontrou no clássico dispositivo de Buenos Aires um redentor veículo que transcende e absolve culturalmente uma iconografia pessoal criada no rock argentino desde os anos 80 sem comprometer o conjunto de convicções e princípios filosóficos, morais e políticos que precederam a adopção do modelo interpretativo estabelecido por Roberto Goyeneche ou Edmundo Rivero. Pelo contrário, a tradicional filiação estética deu-se com tal arrebatamento que não só Melingo refundou a sua acção criativa num quadro de inusitada elegância e refinamento formal como se tornou ele próprio um elemento de transformação para o tango contemporâneo. “Corazón & Hueso” é, de certa forma, a manifestação de um dissidente cancioneiro expurgado já de condicionalismos externos: tudo aqui, do mais inesperadamente efabulado ao mais realisticamente cru, do mais ortodoxo ao menos doutrinal, é eminentemente autoral. Até uma oblíqua aproximação ao folclore grego (Rodrigo Guerra, o multi-instrumentista da distinta Pequeña Orquesta Reincidentes, toca bouzouki na maior parte dos temas e aqui e acolá surge um coro dramático) parece emergir do mesmo paradigma que define os contornos a nocturnas valsas e narcóticas milongas. Um meditabundo e romântico contista dado à sátira, o cantor coexiste com as suas personagens traçando-lhes subterrâneos apetites e perversas loucuras, tingindo de negro arranjos que, de tão leves, simulam, neste contexto, a maior das ilusões: a representação de um mundo sem mácula.
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