Para o Doodles,
da Op, revisitei, com ênfase em Luiz Eça, as reedições da Soul Jazz consagradas
ao Tamba Trio e a Edu Lobo.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
29 de maio de 2012
26 de maio de 2012
Thaís Gulin “ôÔÔôôÔôÔ” (Slap, 2011)
Só um
disco assim – ainda que cá chegando um ano atrasado – conseguiria contrariar a
contínua contração do mercado português face à mais importante música popular
brasileira de hoje. Ajuda, nesse contexto, a formatação clássica de uma
apresentação que tempera repertório original com material de cancionistas
tarimbados (Chico Buarque, Tom Zé, Jards Macalé ou Adriana Calcanhotto), que inclui
duetos de relativa fatuidade (precisamente Chico e Tom, nos singulares temas de
que são autores), um soberbo naipe de instrumentistas (Daniel Jobim, Domenico
Lancellotti, Marcelo Jeneci, Tutty Moreno ou Jaime Alem), compositores à medida
de qualquer arranjo (Jacques Morelembaum ou Arthur Verocai), produtores
medalhados (Kassin e Alê Siqueira) e que nem dispensa a cartada novela-das-oito
com ‘Paixão Passione’, uma coisa meio bethânia saída da pena de Ivan Lins. Ou
seja, tudo como se a indústria fonográfica de antanho não tivesse já com os
dois pés na cova, quando é óbvio que só os bolsos combinados de mecenas
privados e instituições públicas proporcionam o financiamento de uma ação de
tais características. Está aqui implícito mérito, pois, com a retração do
negócio e consequente perda de influência das editoras, se afiança que o estatuto
marginal não é uma inevitabilidade (logo em 2011, quando a melhor música feita
no Brasil – por Gui Amabis, Caçapa, Passo Torto, Pélico, Cícero ou pelo trio de
Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thiago França – esteve tão longe do centro das
atenções). Mas Thaís Gulin não imagina tanto a restauração de um empório
comercial quanto a possibilidade do Rio de Janeiro se tornar, novamente, uma
cidade maravilhosa – daí o onirismo do seu samba, o ambiente mavioso em que
mergulha as canções, o seu tom sonial. E essa distância da realidade chega para
obliterar um presente que não serve a quase ninguém.
19 de maio de 2012
Rob “Make It Fast, Make It Slow” (Soundway, 2012)
Há pelo
menos dez anos que, através de compilações, (já não tão) jovens europeus se entregam
à difusão de uma fantástica conceção da música popular africana das décadas de
60 e 70, coadunada, por sua vez, com o desejo de se disputar a versão oficial
dos acontecimentos no discurso cultural que acompanha o assunto. Tal impulso
deu ainda origem a um fabuloso espaço de contínuo trânsito ficcional entre
géneros supostamente canónicos que substituiu premissas historiográficas por
uma narrativa de inveracidade factual com resultados frequentemente
deslumbrantes em termos estéticos, embora, também, eticamente reprováveis. O
ganês Rob Reindorf será vítima disso mesmo, quando, em 2002, pela sua inclusão
em “Ghana Soundz: Afrobeat, Funk and Fusion in the 70's”, viu incompleta e anacronicamente
celebrada a sua declamação coital no tema com que batizou este seu segundo – e,
ao que tudo indica, último – álbum de 1977, num momento em que, em Acra, sem
especial notoriedade, e sem que por isso alguém se viesse a interessar, se
dedicava ao gospel. Só que nem as editoras
nem os seus seguidores têm de antepor o material contemporâneo ao de arquivo,
nem, muito menos, se lhes exigirá que o contextualizem de acordo com quaisquer parâmetros
de valorização artística que não os ocidentais. Mas a verdade é que apenas a
reedição integral de álbuns permite a substituição da fantasia interposta pela
original. E, no caso, dessa maneira se entende que as lúbricas elucubrações de Rob
(cuja LP de estreia foi no ano passado relançado pela Analog Africa) partiam da
megalomania sexual rumo à submissão religiosa sem por um segundo abandonarem a
mais blasfemadora cadência, a mais histriónica lascívia, mas, igualmente, sem
deixarem jamais de sugerir a untuosa leitura do evangelho pela qual deveriam
efetivamente ser recordadas. E isso vale um disco inteiro.
12 de maio de 2012
Céu “Caravana Sereia Bloom” (Universal, 2012)
Veiculando
uma desadequada lassidão, primeiro no homónimo disco de estreia (“CéU”, 2005) e
posteriormente em “Vagarosa” (2009), Maria do Céu Whitaker Poças sempre pareceu
seguir procedimentos de produtor. O que, em abono da verdade, lhe garantiu mais-valias
comerciais e o favor da crítica. Mas no prudente equilibrismo formal desenhado
com o compasso do dub e temperado com
a indefinição do jazz que lhe marcava
o passo pressentia-se também uma contemporaneidade postiça, de curto alcance
intelectual e, a espaços, previsível unidimensionalidade. Só que a técnica não
tem de ser um estorvo. E, num enquadramento estético francamente livre e
apropriadamente errático, para o qual terá contribuído a ação de Gui Amabis,
Pupillo ou Dustan Gallas, este “Caravana Sereia Bloom”, na mesma proporção em
que aparenta uma mais realista objectivação processual, sugere uma expressão
autoral de rara clareza e dramática introspecção. E, numa elíptica narrativa equivalente
ao cinematográfico road movie que em
nada lhe compromete a fluidez, as suas canções reflectem as experiências da
estrada seguindo instintos de sonoplasta e um dispositivo tão dispersivo quão
restaurativo. Nessa medida, não surpreende que os seus momentos de maior acuidade
se encontrem em ‘Amor de Antigos’, ‘Retrovisor’ e ‘Baile de Ilusão’, temas
escritos pela cantora que tão bem traduzem esse desígnio ontológico, essa emulsão
da memória vertida para as páginas de um diário. Aliás, é pela combinação sincrónica
e não hierarquizada da matéria musical histórica (no caso: a guitarrada de
Mestre Vieira, o tropicalismo de Gil, a jovem guarda de Erasmo, o psicadelismo
de Rita Lee ou o regionalismo dos Novos Baianos) que Céu comunga finalmente da
mais distinta característica da sua geração: o repúdio do preconceito enquanto uma
libertária e extática revogação da apatia.
5 de maio de 2012
Entrevista a Susana Baca
Na
senda do pioneiro trabalho desenvolvido por José Durand, Porfirio Vasquez ou pelos
irmãos Nicomedes e Victoria Santa Cruz, a cantora Susana Baca tem promovido os
valores da cultura afroperuana num contexto nacional de contínua adversidade. Mas
o impacto mundial da sua acção obrigou a um reconhecimento interno que, à
semelhança do que se tinha passado no Brasil com Gilberto Gil, no Panamá com
Rubén Blades ou em Cabo
Verde com Mário Lúcio (a mais recente entrada nesta lista é a
de Youssou N’Dour, há um mês nomeado no Senegal), culminou no convite para
chefiar o Ministério da Cultura. Afastada do cargo numa tão repentina quão
inesperada reformulação governamental, foi recentemente galardoada com um
segundo Grammy (pela sua colaboração com o grupo Calle 13) e regressou aos
discos e aos palcos com “Afrodiaspora”, uma meditação sobre o sincretismo em que
incluiu cumbia colombiana, bomba e plena porto-riquenhas, tango argentino, música afro-cubana ou forró
da região do nordeste brasileiro, e que traz agora aos palcos de Lisboa e
Porto.
Na apresentação de
“Afrodiaspora” fala da sua infância em Chorrillos, mas o disco está longe de
ser uma representação nostálgica desse período. Em criança reconhecia
diferenças entre a música feita pela sua família e amigos e aquela que se ouvia
na rádio?
Sim,
havia uma enorme diferença: a nossa música não passava na rádio. Aliás, as
rádios podiam passar música ‘afro’ de qualquer lugar menos do Peru. Era como se
aqui não existissem negros. Fui dando conta dessas diferenças através da minha
grande paixão pela música.
Terá sido importante a proximidade
com o grupo Perú Negro. Como era nessa altura (entre os anos 60 e 70) afirmar
os valores da cultura afroperuana num contexto tão discriminatório?
Foi
muito importante: Perú Negro surge como uma trupe de dançarinos e músicos
afroperuanos num período em que a nossa cultura não tinha qualquer
visibilidade. Recordo alguns episódios desse tempo: para a polícia, por
exemplo, os negros – ou mesmo quem tivesse fisionomia indígena – eram todos
potenciais delinquentes. E éramos constantemente ridicularizados: diziam-nos
que os negros não pensavam.
Paralelamente, quão
importante para as aspirações da sua geração foi testemunhar a luta pelos
direitos civis dos afro-americanos ou os movimentos independentistas africanos?
Havia uma relação direta entre o que via passar-se no mundo e a crença de que
seria possível transformar o Peru?
A
luta dos afro-americanos nos EUA foi um exemplo para toda a diáspora africana. No
meu caso, o livro “Soledad Brother” (a história de um recluso na prisão de
Soledad e a sua história de discriminação às mãos do sistema judicial norte-americano)
marcou-me tremendamente. Compreendi então a real dimensão do preconceito nos EUA.
O que me fez reflectir sobre aquilo que se estava a passar no Peru e as
injustiças que via à minha volta.
Além da questão racial,
havia ainda que contrariar as ideias feitas sobre o papel da mulher na
sociedade. Nessa perspetiva testemunhou o exemplo de Chabuca Granda. Como era então
para uma mulher querer afirmar-se artisticamente?
A
Chabuca contou-me que teve de escrever as suas primeiras composições sob pseudónimo.
Na alta sociedade, a que pertencia, era indecoroso que uma jovem quisesse escrever
canções – ser artista era sinónimo de se ser prostituta. Para me transformar numa
mulher artista tive de lutar contra um preconceito racial muito forte, um preconceito
de género e, além disso, por originar de uma família sem recursos, um tremendo preconceito
social.
Ao contrário do que se
passava em muitos países vizinhos (como no Brasil ou na Colômbia) era raro
encontrar manifestações da diáspora no Peru. A cultura afroperuana era invisível
ou estava em risco de desaparecer?
A
presença da cultura africana na América foi, com diferentes nuances, tornada
invisível tanto pelas classes dominantes como pelos próprios afro-descendentes,
envergonhados pela nossa história de escravatura. Apenas no gueto familiar se conservaram
os usos e costumes dos nossos avós. E a cultura afroperuana estava
efectivamente em risco de desaparecer. Só através da memória e da transmissão oral
se mantiveram alguns dos seus traços.
E assim decidiu partir
para o trabalho etno-musicológico de campo?
Comecei
há muitos anos, quando estava ainda viva a minha mãe, que sempre gostou de
música e de encorajar reuniões familiares que terminavam com canções e danças. Perguntei-lhe
sobre a música que ouvia quando era pequena. E depois falei com as minhas tias.
No terreno, a descoberta que mais me surpreendeu e agradou foi na cultura afro-andina:
de negros e índios que se juntavam para trabalhar o campo e que ao partilharem
a vida acabaram por partilhar também a música. Parte dela, a que se canta no
Natal, e que é linda, gravei num disco recente chamado “Cantos de Adoración”.
Parte desse trabalho
culminou no início da década de 90 numa decisiva obra-prima, “Del Fuego y Del
Agua”. O que recorda desse tempo?
Trabalhar
em “Del Fuego y Del Agua”, que é mais livro do que disco, foi temerário, porque
tive de ir ao fundo, ler sobre a escravatura e tudo isso dói profundamente.
Lembrava-me da minha irmãzinha Maria, uma mulher linda e meiga como um cordeiro
que não suportava ler as histórias das mulheres negras escravizadas. Ficava com
tanta raiva que senti desejos de vingança e morte. Ainda bem que estava a
colaborar com o meu companheiro de vida, Ricardo Pereira, e com Francisco
Basili, um querido amigo – eles ajudaram-me a ultrapassar as minhas tristezas.
Fiquei com a alma limpa e hoje não odeio ninguém. Como diz o Ricardo, exorcizei
as minhas memórias.
Acredita que a condição
de relativo isolamento dos africanos levados para a costa do Pacífico deu
origem a uma cultura sincrética com características distintas daquela
encontrada nas colónias sul-americanas viradas para o Atlântico?
Sim,
os afro-descendentes do Pacífico manifestam-se de forma diferente dos do Atlântico.
Para nós, os do Pacífico, a situação de desprezo e pressão foi mais intensa,
pois estávamos sob o governo do vice-reinado, no centro do poder político e do
poder religioso e, por isso mesmo, foi-nos muito mais difícil conservar uma cultura.
Existia um grande controlo da Igreja Católica, que queria silenciar toda e
qualquer manifestação vinda dos escravos. Enquanto que na costa Atlântica se vivia
uma situação mais relaxada: mantiveram-se ritos, bailes e celebrações. Nós tivemos
de esconder as nossas divindades por baixo das divindades da Igreja Católica,
por exemplo. E isto foi tão devastador que acabámos por perder muita da nossa
religiosidade e, por consequência, de toda a música que acompanhava esses
rituais.
Há diferenças entre a
cultura afroperuana e a cultura crioula. Quão importante para a cultura
afroperuana é o orgulho de uma herança distinta da dos descendentes de
espanhóis ou dos povos andinos?
Durante
muito tempo, no Peru, discutir cultura crioula era uma maneira de tornar
invisível a cultura afroperuana. Falava-se sempre da cultura crioula, ou da
música crioula, para não se falar especificamente da africana. Hoje existem já associações
de jovens que põem em relevo os contributos dos afro-descendentes e que se sentem
orgulhosos do seu passado. Mesmo na música, ainda que longe da divulgação de
massas, encontramos manifestações semelhantes.
Curiosamente, nos
últimos anos começou a dar-se atenção à música rock peruana e à música popular
urbana feita por descendentes de índios, a chicha,
que foi também censurada pelos regimes militares. Em algum período se procurou
fazer uma ponte entre essas experiências e a da música afroperuana?
Sim,
através dos Pólen, por exemplo. Eles sempre tiveram muitos seguidores. Os
eventos em que participei com eles arrastaram muita gente, o que nos deu imenso
orgulho, mas foi sempre no meio underground,
à margem dos grandes meios de comunicação.
Mas além da preservação,
é igualmente importante para si explorar outras manifestações da diáspora. Nos
encontros com essas culturas, estabeleceu novas ligações com a sua?
É
exactamente isso. Tenho vindo ao longo dos anos a assistir a festivais de
música em todo o mundo e a partilhar experiências com artistas da ‘world music’.
Vejo muitos grupos que têm instrumentistas africanos e afro-descendentes. E
percebo também que muitos ritmos distintos da América negra têm semelhanças ou partilham
uma mesma raiz. Foi de certa forma ao percorrer esses festivais que lancei as
bases de trabalho para “Afrodiaspora”.
A visibilidade internacional
conquistada através das suas edições pela Luaka Bop ajudou-a a ganhar mais
atenção no Peru? Que projetos desenvolveu desde então?
O
reconhecimento internacional já era enorme, com os discos que gravei para a
Luaka Bop espalhados pelo mundo fora. Mas quando ganhei o Grammy, em 2002, até no
meu país me procuraram. Todas aquelas rádios que nunca tinham passado a minha
música estavam de repente interessadas. Eu e o meu marido tínhamos fundado o projecto
Negrocontinuo para formar jovens artistas e queríamos que funcionasse como um
espaço para manter vivos os valores da cultura afroperuana. Mudámo-nos há
alguns anos para o sul de Lima, para uma povoação chamada Santa Barbara, no
distrito de San Luis de Cañete. Havia aí uma antiga fazenda em que se cultivava
cana-de-açúcar e algodão com recurso à mão-de-obra escrava. É onde hoje temos
uma bela área frente ao mar para a qual transferimos uma biblioteca especial
sobre cultura afroperuana (com o nosso acervo de gravações etnográficas), além
de possuirmos uma sala para conferências e projecções. Entretanto, o Negrocontinuo
foi também integrado num Centro Cultural da Memória.
O culminar do
reconhecimento oficial pela sua obra terá sido a nomeação para ministra da
cultura, por Ollanta Humala. Mas acabou por ficar apenas cinco meses no cargo.
O que de melhor e pior retira da experiência?
Bem,
o pior foi sentir que me nomearam como uma espécie de mucama que veio fazer a
limpeza ao gabinete antes dos doutores brancos tomarem posse. Porque não ficava
bem ter uma artista negra, ainda para mais cantora de música popular, no cargo.
Por isso só trabalhei quatro meses e meio, o que é pouquíssimo tempo para gerir
seja o que for. Logo eu, que, como disse o Presidente ao dar-me o cargo,
personificava a inclusão. Mas apesar de tudo tive experiências maravilhosas. Viajei
pelas povoações do interior do país e vi como aí se cuida dos monumentos, por
exemplo – como há orgulho nisso. E pude confirmar a imensa riqueza arqueológica
do Peru. Mas este Ministério da Cultura é muito jovem. Tem apenas um ano. É
necessário criá-lo realmente, dar-lhe força institucional. Eu abri-lhe as
portas ao que considero a cultura viva, aos artistas – que vieram em grande
número fazer parte dele – e aos povos indígenas. Para que todos se pudessem aí sentir
como em casa.
Está alguma coisa a ser
feita pelo governo de forma a preservar a tradição afroperuana? Ou melhor, de
forma a mostrar que há orgulho nacional em incluir essa tradição na identidade
peruana?
Acho
que ainda estamos na fase de exigir respeito. Apresentou-se agora um projeto de
lei contra a discriminação, que deverá ir, espero que brevemente, ao Congresso
da República para discussão e aprovação. Assim a discriminação passaria finalmente
a ser penalizada no nosso país.
“Afrodiaspora” é uma
viagem. Já tinha no passado cantado em português ou inglês, mas agora mantém o
enfoque cultural numa comum ascendência africana. A universalização da sua
produção é o culminar da sua proposta estética?
Essencialmente,
eu quero mostrar ao público que existe uma América que pode celebrar o seu africanismo,
essa presença e essência da cultura africana trazida pelos escravos que, oriundos
de diferentes pontos, aqui se enraizaram. Que neste continente nasceu uma nova
cultura misturada com as culturas originárias da região, muito distinta, muito
forte… e que sobrevive.
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