Numa
entrevista de março de 2009, disponível no site
do Expresso sob a designação “Música no coração das trevas”, dizia Renaud
Barret, um dos autores do documentário “Benda Bilili!”, que ninguém queria saber
desse bando de paraplégicos e meninos de rua de Kinshasa, acrescentando: “fomos
filmando o seu dia-a-dia sem saber bem o que fazer com aquilo… A sobrevivência
dos membros do grupo, os miúdos a dormir no chão, as histórias das prostitutas
de um dólar, os soldados completamente drogados, ladrões por todo o lado.
Ninguém consegue imaginar aquilo por que passaram”. Três anos depois, no embalo
de uma história que testemunhava a resiliência do espírito humano e a
capacidade de contrariar a mais adversa das sortes no mais hostil dos terrenos,
já o beneplácito crítico consagrado ao álbum de estreia, “Très Très Fort”, a
eufórica receção em palcos do mundo inteiro (Portugal incluído) e o próprio palmarés
do premiado filme constituem parte significativa de uma narrativa de aceitação
global que demoliu todo o tipo de preconceitos sem ceder à condescendência do
politicamente correto. E, no entanto, como não poderia deixar de ser, vozes
céticas se ergueram acusando os agentes ao seu serviço de terem precisamente explorado
aquilo a que nenhuma outra banda do mundo se nega: o direito de falar sobre o
lugar de onde vem e de refletir sobre a única vida que conheceu. Não será por passarem
a ter telhados sobre a cabeça, alimentarem famílias, matricularem filhos na escola
ou exornarem ainda mais as suas motas que os membros da banda alteram agora essa
primitiva realidade. Porque “Bouger le Monde” torna a reforçar a identidade
cultural da rumba congolesa como uma infiltração de humanidade num charco de
malevolência e a ouvir-se como um manifesto contra as paralisantes forças da comiseração
no mundo inteiro.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
27 de outubro de 2012
20 de outubro de 2012
Tamba Trio “Tempo” (Soul Jazz, 2012)
Sopravam
ventos de mudança e logo em janeiro de 64 chegava Bob Dylan com ‘The Times They
Are a-Changin'’ munindo de poesia os que lutavam contra a iniquidade na sociedade
norte-americana. No Rio de Janeiro, na mesma altura, mas à cautela, um Tamba
Trio com militância no esquerdista Centro Popular de Cultura, da União Nacional
de Estudantes, falava dessa iminente transformação social de forma mais
abstracta. Até porque, sendo ainda este Tamba o de Luiz Eça (piano), Bebeto
Castilho (sopros e contrabaixo) e Hélcio Milito (bateria e percussão) –
formação que se reencontraria apenas no início da década de 70 –, não deverá a
escolha de título do seu terceiro álbum proceder da tomada de consciência de
que lhe escassearia em breve aquilo que à música nunca faltava. O tempo,
precisamente. Por outro lado, era igualmente possível que se tentasse aqui tomar
o pulso de algo porventura mais intangível: a improvável união entre o jazz brasileiro
pós-bossa nova e a canção de intervenção patenteada por Carlos Lyra, Edu Lobo,
Sérgio Ricardo ou Geraldo Vandré. É nessa indeterminada encruzilhada que o
Tamba, no caso coadjuvado pelo violão de Durval Ferreira e um naipe de
violoncelos (não creditados), fixou um crucial campo de acção a que jamais
regressaria com semelhante acuidade. E foi a partir dessa disposição que
produziu matéria diversa daquela que, nesse mesmo ano, promulgaram brilhantemente
cúmplices seus como Luiz Carlos Vinhas, Meirelles e os Copa 5, Cobras, Tenório
Jr., Flora Purim, Gatos, Sérgio Mendes, Ipanemas, Eumir Deodato, Sambalanço
Trio, Cinco-Pados, o Som 4 de Hermeto Pascoal ou o 3-D de Antonio Adolfo. Mas, na
frente política, o Golpe Militar de 31 de Março mergulharia em sombra a
primavera. E, já o “Getz/Gilberto” o provava, para esta geração, a liberdade implicaria
o custo de se viver longe de casa.
Suggested listening:
“A Arte Maior de Leny Andrade”, Leny
Andrade
“A Nova Dimensão do Samba”, Wilson
Simonal
“Bossa Nova Bossa Nova”, Pedrinho
Mattar Trio
“Conjunto Som 4”, Conjunto Som 4
“Embalo”, Tenório Jr.
“Flora é M.P.M”, Flora Purim
“Ideias”, Eumir Deodato
“Luiz Eça e Cordas”, Luiz Eça
“Nova Dimensão”, Lyrio Panicali
“Novas Estruturas”, Luiz Carlos
Vinhas
“O Som”, Meirelles e os Copa 5
“Os Cobras”, Os Cobras
“Os Gatos”, Os Gatos
“Os Ipanemas”, Os Ipanemas
“Os Tatuis”, Os Tatuis
“Samba Nova Concepção”, Os
Catedráticos
“Sambalanço Trio”, Sambalanço Trio
“Trio 3-D”, Trio 3-D
“Você Ainda Não Ouviu Nada”, Sérgio
Mendes & Bossa Rio
“Zero Hora”, Sambossa 5
13 de outubro de 2012
Cumbia Beat Volume 2: Tropical Sounds from Perú 1966-1983 (Vampisoul, 2012)
Eram
tempos de engenharia social, no mesocrático Peru de Juan Velasco Alvarado. Mas
a sediciosa onda que se ergueu no mar das Caraíbas, vinda de Cuba, chegada à
costa colombiana e assomando aos Andes, dir-se-ia um composto lisérgico capaz
de despertar mentes e estimular um bizarro código de transgressão estética solidamente
ancorado nos mais alienados espíritos. E só mesmo a distância das elites
impediu que um acto de transubstanciação tão similar ao ensaiado pelos
tropicalistas brasileiros, ainda para mais com mestiça fundação, escapasse a
constrangimentos de classe. Ficou por isso, porventura até à década de 80,
quase totalmente periférica aos centros de poder esta profética variedade da cumbia que acelerou partículas de son, bolero, rumba, merengue ou mambo no
acompanhamento de hipotéticas e heterodoxas reconfigurações tão devedoras do
rock’n’roll norte-americano que se ouvia na rádio quanto do folclore andino que
as províncias amazónicas e os bairros de lata de Lima celebravam. E foi, de
facto, a partir de 1966 que a sincrética composição despontou como uma mutante entidade
tropical. Logo atestada pelas guitarras elétricas de Enrique Delgado e
Manzanita, e de legiões de seguidores, reflectiu períodos de convulsão política,
paranóia militar, reação oligárquica, golpes e contragolpes numa utópica
combustão que uns viam como virose de bailarico de sábado à noite e outros como
uma abrangente ação contracultural. E adotando o livro de estilo do rock psicadélico
e de garagem (efeitos de delay, fuzz, overdrive, wah wah, etc), os seus agentes promulgaram
uma delirante realidade ameríndia na era de todas as fantasias ideológicas. Esta
nova antologia de 34 temas – com Destellos, Juaneco y su Combo, Ecos, Compay
Quinto, Mirlos ou Beta 5 – traça-lhe impacto epocal ambicionando a eternidade.
6 de outubro de 2012
Don Cherry “Organic Music Society” (Caprice, 2012)
Estamos
em Bollnäs, na Suécia, a 23 de junho de 1971, num campo de férias para
estudantes de música; Don Cherry, acompanhado pelo percussionista Okay Temiz,
surge como professor convidado e, insistindo mais em entoação do que em
notação, ensina a cerca de 50 instrumentistas ‘Bra Joe From Kilimanjaro’, do
pianista sul-africano Dollar Brand e ‘Terry's Tune’, do compositor
norte-americano Terry Riley, com uma indicação crucial: não há líder; os alunos
terão de se ouvir uns aos outros para que se encontre o tempo natural do grupo.
Onze dias mais tarde, na cúpula geodésica arquitetada por Buckminster Fuller para
os jardins do Museu de Arte Moderna de Estocolmo, com os turcos Temiz e Maffy
Falay ou o flautista sueco Tommy Koverhult, apresenta-se no âmbito da exposição
“Utopia & Visões” tocando temas indianos, o ‘The Creator Has a Master
Plan’, de Pharoah Sanders e Leon Thomas, e uma balada que no álbum “Relativity
Suite”, a gravar com a Jazz Composer’s Orchestra, ganhará o título de ‘Desireless’.
Já a 28 de julho de 1972, com a companheira, Moki Karlsson, numa comuna nos
arredores de Copenhaga, na Dinamarca, está desde a noite anterior a aprender um
hino cantado por um jovem brasileiro; às 6 da manhã regista enfim ‘North
Brazilian Ceremonial Hymn’ a dez vozes, com Moki à tambura e Naná Vasconcelos,
o visitante, no berimbau. “Organic Music Society” é feito disto: uma espécie de
gnose em transe comunitário com infinita capacidade de encantamento e regeneração
ritualista de credos holísticos e panteístas. Lançado há 40 anos e só agora reeditado
em CD, é também o ponto na carreira de Cherry – onde cabe ainda uma sessão com
Bengt Berger, Christer Bothén ou Hans Isgren a evocar China, Mali, Marrocos e
Índia – em que todo o tempo (passado e futuro) flui e, como tal, vive melhor na
mente do que no mundo; será essa a sua única derrota.
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