30 de maio de 2015

Scriabin: The Complete Works (Decca, 2015)



Em meados da década de 90, por alturas da revisão da biografia que consagrou a Alexander Scriabin (1872-1915), originalmente publicada em 1969, o norte-americano Faubion Bowers, em prefácio, dava conta do “muito que se tinha entretanto passado no mundo da Scriabiniana”. Lembrava, por exemplo, que, em 1972, no ano do centenário do nascimento do compositor, os correios da URSS tinham emitido um selo de 4 copeques alusivo à efeméride. Ou que, pela mesma ocasião, Margarita Fyodorova, docente no Conservatório de Moscovo, havia apresentado a totalidade da sua obra para piano em cinco concorridos recitais. Aliás, como um sintoma dessa crescente popularidade, e indo direto ao que interessava, também Sviatoslav Richter propunha, então, pelo mundo inteiro, programas de concerto monopolizados por Scriabin, que considerava uma “droga poética”. Enquanto nos EUA, e de há muito, era Vladimir Horowitz, entre outras coisas dizendo que “Scriabin antecipou o átomo”, a liderar a reconsideração do seu fabuloso legado junto da opinião pública. Na Europa, notabilizava-se Vladimir Ashkenazy ao interpretar as suas dez sonatas e dirigir as suas cinco peças sinfónicas.

Curiosamente, nessa introdução, embora concluísse que “Scriabin estava na moda”, Bowers omitia ilustres contemporâneos como Ruth Laredo, Michael Ponti, John Ogdon ou Roberto Szidon, cada qual com contribuições decisivas para o cânone. Mas, se tivesse vivido até hoje, para lembrar uma mão cheia de nomes, teria de acrescentar à lista o que de modo subsequente vieram a fazer Gordon Fergus-Thompson, Piers Lane, Grigory Sokolov, Maria Lettberg ou Artur Pizarro. Pois a verdade é que Scriabin nunca esteve tão vivo quanto nos últimos vinte anos. Até o megalómano “Mysterium”, que pressupunha a precoce multimediatização de um conjunto de técnicas que, muito mais tarde, só Jean-Michel Jarre terá chegado a dominar, e para o qual não havia deixado mais do que um esboço concetual e um estudo preparativo inchadíssimos pela papeira do esoterismo, viu apocrifamente a luz do dia à custa da dedicação de Alexander Nemtin. Apesar de tudo isto, e porque Scriabin possui, de facto, uma sede volátil no pensamento ocidental, não surpreende que, como duas crianças que tentam a todo o custo finalizar uma caderneta de cromos, e de maneira a garantir esta inédita integral, tenha a Decca trancado em estúdio Ashkenazy e Valentina Lisitsa em novembro e dezembro passados. Ou seja, além da apregoada visita aos arquivos, esta antologia reúne, também, cerca de 60 novas gravações exclusivamente realizadas para o efeito.

Neste particular, esclareça-se que, hoje, à semelhança de outras empreitadas recentes, vasculhar no baú patrimonial em nome da Decca significa aceder ao conjunto de matrizes na posse do grupo Universal, o que tanto pode testar a capacidade de invenção dos seus organizadores quanto a de compreensão dos ouvintes que os seguem. Isto porque, ao nível da receção, dir-se-ia que estas escolhas são sempre feitas em prejuízo de alguma coisa. Atente-se ao CD 6, que ilustra perfeitamente esta tendência: por Lisitsa, acabados de registar e a roçar a bipolaridade, temos o “Poème satanique, op. 36”, o “Poème, op. 41”, o “Scherzo, op. 46” e o primeiro dos “3 Morceaux, op. 49”; por sua vez, das mãos enxutas de Ashkenazy saem frescos os “8 Études, op. 42”, os “3 Morceaux, op. 45”, a “Quasi-valse, op. 47” ou os “3 Morceaux, op. 52”, além de que de 1987 chegam requentados os “4 Morceaux, op. 51”; já os “4 Préludes, op. 37”, os “4 Préludes, op. 39”, as “2 Mazurcas, op. 40”, os “4 Préludes, op. 48” e o segundo dos “3 Morceaux, op. 49” são extraídos às equilibradas sessões de 1999 e 2000 de Fergus-Thompson para a ASV; depois, há a “Valse, op 38”, retirada ao CD de 2014 de Benjamin Grosvenor, os “2 Poèmes, op. 44”, por Jean Louis Steuerman, captados em 1988, o terceiro dos “3 Morceaux, op. 49”, de 2002, por Anna Gourari e, por fim, de 1962, por Richter, com o selo da Deutsche Grammophon e sem um grama de bolor, a “Sonata Nº 5, op. 53”. É fácil perder-se o fio à meada.

Não obstante, não há aqui tanto material da DG quanto seria de prever, além de uns pozinhos mágicos de Ivo Pogorelich na “Sonata Nº 2, op. 19” e do manto de crude derramado por Pierre-Laurent Aimard na “Sonata Nº 9 (Missa Negra), op. 68”. Pouco se aproveitou de Szidon e Yevgeny Kissin na obra pianística, enquanto na restante, talvez por fidelidade a Ashkenazy, se dispensou por completo o que fizeram Pierre Boulez e Anatol Ugorski, nomeadamente no “Concerto para Piano, op. 20”, com a Sinfónica de Chicago, Mikhail Pletnev com a Nacional Russa ou Giuseppe Sinopoli com a Filarmónica de Nova Iorque. Seja como for, como escreveu Leonid Sabaneyev, as cinco peças para orquestra de Scriabin parecem de um “falso sinfonista” ou, no limite, são o resultado de “uma pseudoorquestração de ideias muito pouco sinfónicas”. É pelas bordas de mazurcas, prelúdios e sonatas, erodindo e erotizando formas, que Scriabin deixou matéria suficiente para ir daqui até à eternidade.

23 de maio de 2015

Bassekou Kouyaté & Ngoni Ba “Ba Power” (Glitterbeat, 2015)



Na zona de Tombuctu, o ataque a uma coluna militar do exército maliano por um grupo separatista tuaregue resulta em oito mortos. Já em Hamdallahi, militantes jiadistas destroem um mausoléu selecionado para a candidatura a Património da Humanidade. Em Gao, Kidal e Bamako, atentados terroristas de afiliados da Al-Qaeda fazem vítimas entre civis e agentes ao serviço das Nações Unidas. Isto apenas nas últimas semanas. Neste contexto, outra coisa não pode Bassekou Kouyaté fazer senão servir de exemplo. Ele que, há coisa de dois anos, em entrevista ao Expresso, dizia que a solução para os problemas do Mali eram os músicos que a tinham. “Nós, que somos como um país à parte, andamos a falar nisto há séculos”, afirmava, referindo-se a algo que, agora, em ‘Abe Sumaya’, sintetiza assim: “Mali/ Onde vive o islão e a tolerância// Tínhamos ouvido falar de guerras no exterior, mas não conhecíamos conflitos/ Por isso, homens, mulheres, jovens e velhos, deem as mãos em sinal de unidade”. Talvez por essa razão, como quem sugere que é sempre possível chegar-se a um entendimento mesmo quando quase nada se possui em comum, goze este “Ba Power” de uma lista de convidados que se assemelha à de uma cimeira internacional. Nessa perspetiva, presume-se que nomes como os de Jon Hassell, Chris Brokaw e Dave Smith tenham chegado pela mão de Chris Eckman, o diretor artístico da Glitterbeat, que, por sinal, toca hoje em Alcobaça e faz atualmente por músicos africanos o que, quando vivia na Calçada da Estrela, tentou um dia fazer pelos Raindogs. Se o disco resulta ainda há esperança para os acordos de paz.

Jon Hassell/Brian Eno “Fourth World Vol. 1: Possible Musics” (Glitterbeat, 2015) & Dave Douglas “High Risk” (Greenleaf, 2015)




Atrasado um, adiantado o outro, ditam as extraordinárias vicissitudes do mercado português que “Possible Musics” (o LP original é de 1980, esta reedição é de novembro passado) e “High Risk” (com data oficial de lançamento anunciada para 23 de junho) aterrem nas lojas nacionais em simultâneo. E, escutando-os, é inevitável recordar-se a seguinte frase: “Devo muito ao Jon. Aliás, muita gente deve muito ao Jon. Ele plantou uma semente forte e fértil cujos frutos continuam a ser colhidos.” Foi Brian Eno que a escreveu, em novembro de 2007, por altura de um concerto de Hassell em Londres. Agora, dir-se-ia que assenta que nem uma luva à nova banda de Dave Douglas com Zach Saginaw (Shigeto), ainda que um cínico possa sugerir que os dois discos não possuem mais em comum do que aquelas imagens de satélite cedidas pela NASA que lhes ilustram as capas. Seja como for, é improvável que Douglas rejeite hoje o axioma de ontem: “Quarto Mundo, ou seja, o que está para lá do Terceiro Mundo – um som primitivo/futurista que combina elementos etnográficos com tecnologia eletrónica de ponta. Na sua máxima expressão, este cruzamento de influências cria a impressão de um som novo e unificado.” Isto redigiu Hassell há 35 anos. Douglas pode ter mais em mente Brooklyn do que o Burundi, mas assina por baixo.

Pierre Boulez "Le Domaine Musical" (Universal, 2015)



Num livro editado nos anos 50, o ator e encenador Jean-Louis Barrault, um empregador inicial seu, dizia algo com que Pierre Boulez se poderia identificar: “Na realidade, as coisas mais difíceis de fazer bem são as mais simples. Ler, por exemplo. Ser capaz de ler exatamente tudo tal como está escrito, sem omitir nada do que está escrito ou acrescentar-lhe seja o que for.” Mais do que isso não pedia o maestro, quando, na mesma altura, em Paris, sob o incentivo de Souvtchinsky, do casal Barrault-Madeleine Renaud e o patrocínio de Mme. Tézenas, e recrutando instrumentistas entre as várias orquestras espalhadas pela cidade, fundou a associação “Domaine musical” para permitir ao público interessado essa coisa extraordinária de ouvir música do seu tempo tal como nesse exato momento estivesse a ser escrita. Promoveu inúmeras estreias: de Stockhausen, Berio, Nono, Maderna, Pousseur, Ligeti, Henze ou, até, de Messiaen (no caso, os prodigiosos “Sept Haïkaï”, aqui incluídos). Mas fez, também, justiça aos compositores da Segunda Escola de Viena e ao Stravinsky coevo, historicamente ausentes dos programas de concerto franceses. Alguns recitais – em que pela assistência se apertavam Staël, Michaux, Char, Wou-Ki, Moravia, Jouve, Masson, Ernst, de Mandiargues ou Vieira da Silva – foram gravados e lançados pela Vega, depois reeditados pela Adès e, finalmente, em 2006, pela Accord. É esse material que este volume agora reúne, lembrando que o domínio da música se constrói com um pouco de independência e intimidade, com muito engenho, alguma ingenuidade e, até, com as canções que não se cantam.

16 de maio de 2015

Eve Risser “Des Pas Sur La Neige” (Clean Feed, 2015)



São três temas (‘Des Pas Sur la Neige’, ‘Des Pas Sur la Ville’ e ‘La Neige Sur la Ville’), cada qual com o seu esquema visual. No da capa, as pegadas sobre a neve parecem liliputianos pianos de cauda, aos pares. E se o minimalismo fosse uma questão de escala, podia, até, dizer-se que é neles que toca Eve Risser, o que só confirma o poder de sugestão desta música e o encantamento que nela reside. Aqui, atinge-se o máximo de efeitos com um mínimo de recursos, tudo é arbitrário e nada parece ter sido deixado ao acaso e, mais do que desafiá-las, expõem-se categorias ao ridículo. Por um lado, a pianista produz um incessante inquérito às virtudes mais especulativas do seu instrumento, para cujo âmago desliza como pela toca do coelho caiu Alice, e não se vislumbra uma ação mais dependente de um mundo interior. Por outro, mais não faz do que dramatizar perturbações domésticas: arrasta mobília do sítio fora de horas, mói ruidosamente grãos de café logo pela manhã, afina o chiar de canos enferrujados, traduz o ciciar dos ramos da árvore à janela, divide o ritmo de uma torneira que não para de pingar, aguarda enquanto o compressor do frigorífico dá continuamente o tom para uma canção que começa jamais, adivinha código morse nos passos dos vizinhos de cima, imagina uma batalha entre potes e panelas dentro da máquina de lavar loiça, põe o amplificador da aparelhagem a funcionar com uma pancada no sítio certo, coloca a cidade sob escuta. Toca e convida o ambiente a tornar-se livremente parte da composição, tanto quanto oferece ao seu ouvinte uma catedral na forma de uma “caixa de música”. Tal como Debussy, que também teve a sua "Des pas sur la neige".