Mal havia Jonathan Cott atravessado
a soleira da porta e logo o maestro lhe puxava o tapete: “Aviso já que não
possuo orquestras preferidas, compositores preferidos, sinfonias preferidas,
tipos de comida preferida, formas de sexo preferido… Por isso não me faça esse
tipo de perguntas.” Estavam em Fairfield, no Connecticut, aí a uma hora de
carro a norte de Nova Iorque. Era o 20 de novembro de 1989 e um vento gelado arrastava
a noite pelos cabelos. Bernstein tinha menos de um ano de vida e talvez o
soubesse. Pelo menos havia repetido inúmeras vezes que se comportava como se assim
fosse. “Entretanto, ainda falta um par de horas para o jantar estar pronto”,
prossegue: “Importa-se que sigamos para o meu estúdio e que ouçamos uma
gravação da primeira sinfonia de Sibelius que fiz há uns 20 anos? É suposto
interpretá-la daqui a uns meses com a Filarmónica de Viena e há muito que não a
ouço”. O serão viria a ser dado à estampa como “Dinner with Lenny” e o relato
dessa sessão de escuta contém quase tudo o que se precisa de saber acerca da
relação do norte-americano com o finlandês: “Olha, miúdo! Este é o tema
rabínico… Ali é Beethoven… Tens aqui Tchaikovsky – de ‘O Lago dos Cisnes’ – e
vem já aí Borodin e Mussorgsky… Algum Grieg (mas melhor que Grieg)… E isto é Sibelius – ouve bem, isto é inconfundivelmente Sibelius.” Estava
enganado, claro. Pegando nas suas palavras, tratava-se de um Sibelius melhor do
que Sibelius. E já disso se desconfiava por alturas desta integral sinfónica,
registada entre 1961 e 1967. Agora, quando o compositor faria 150 anos,
confirma-o esta
remasterização.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
25 de julho de 2015
Xanadu Master Edition Series (Elemental, 2015)
[Albert Heath “Kwanza (The First)”; Barry Harris “Plays
Tadd Dameron”; Jimmy Heath “Picture
of Heath”; Al Cohn & Jimmy
Rowles “Heavy Love”; Sam Most “From the Attic of My Mind”; Al Cohn, Billy
Mitchell, Dolo Coker, Leroy Vinnegar, Frank Butler “Night Flight to Dakar” + “Xanadu
in Africa”]
Dentro
da cinta murada de Xanadu, segundo Marco Polo, um faustoso palácio de mármore envolvia-se
em mantos frondosos e lençóis de água fresca. Recheada de riquezas, era a
capital de verão de Kublai Khan e o mais literal dos modelos históricos para
quem crê que a casa de um homem é o seu castelo. De modo crucial, para Don Schlitten,
também assim que se chamava a mansão de Charles Foster Kane em “O Mundo a Seus
Pés”, de Orson Welles. “Por isso, tem sido um nome que associamos à beleza
artística e à felicidade”, diz agora o produtor a Zev Feldman, da Elemental,
lembrando o batismo da empresa que fundou em meados dos anos 70 e, de certa maneira,
abençoando a corrente operação de resgate. Porque a verdade é que parte deste património
estava em risco de se perder. Aliás, sem entrar em pormenores, Feldman conta como
muitas das matrizes fonográficas e fotográficas da editora se destruíram à
passagem do furacão Sandy, em 2012.
Era
uma iniciativa há muito devida. Afinal, no mercado discográfico norte-americano
do período, a par de contemporâneas como a Mainstream ou a Muse – com a qual
Schlitten colaborou –, a Xanadu revelou-se um destino fundamental para o jazz
que fez a creche no bebop. De todas, pese embora Peter Sprague, foi até a que menos
pôs o pé no esoterismo e a que mais resistiu a modas, com Sam Noto, Sonny
Criss, Al Cohn, Charles McPherson, Jimmy Raney, Barry Harris ou Sam Most firmando-lhe
a reputação. O flautista, por exemplo, conforme confessava em “Sam Most, Jazz
Flutist”, um documentário de 2001, tinha já “caído em esquecimento”. Só de
originais, “From the Attic of My Mind”, de 1978, é um exponencial exercício de controlo
idiomático. No filme declarava ter telefonado a Schlitten averiguando acerca da
disponibilidade em CD destes discos, tendo-lhe respondido o produtor: “Vivamos
nós o suficiente para o ver”.
Como
Most, também Al Cohn e Jimmy Rowles se foram antes da reedição de “Heavy Love”,
uma das pérolas do catálogo. Se “As Cidades Invisíveis”, de Italo Calvino, um livro
baseado nas conversas entre Polo e Khan, representa em diálogo a arquitetura da
imaginação, estes duetos de 1977 não fazem por menos. Com a medida certa de escuro
e a dose exata de claro, outro clássico na Xanadu é a investida de Barry Harris
na dameronia, de 1975, cumpriam-se então
dez anos sobre a morte do dedicatário. Trata-se de uma arte em que tudo se
transforma, afirmava Jimmy Heath. O seu “Picture of Heath”, de 1975, é disso
mesmo um retrato, ao regressar ao passado e ao incluir um antitético mas não
menos holístico ‘Body and Soul’, em que a parte do corpo é tocada ao saxofone
soprano e a da alma no tenor. “Kwanza”, do caçula dos Heath, em 1973, narrava
uma estória dentro de outra e tinha a mente em África, ainda que “Tootie” tornasse
de uma temporada europeia. Até solo africano conduziu Schlitten uma comitiva em
1980, resultando daí um par de álbuns que neste lote se incluem por razões
puramente simbólicas. É longo o caminho para Xanadu. Venham as próximas paragens.
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18 de julho de 2015
Sugestões de verão
Florian Fricke/Popol Vuh “Kailash” (Soul Jazz, 2015)
No
sopé do ‘Trono dos Deuses’, no Tibete, peregrinos de olhos avermelhados
ajoelham-se junto a pequenos retábulos e perfumam-se com incensos. Como fazia
nos filmes de Herzog, ao barro humano colando-se como um amuleto, a música de
Fricke acompanha cada ritual até se deixar de perceber quem molda o quê.
Este
CD possui uma citação de “O Profeta”, de Khalil Gibran, retirada do capítulo
‘Sobre as Casas’. Mas quem para ele parta com o Chatwin de “O Canto Nómada” em
mente também não se deverá perder pelo caminho. Pois a verdade é que, como os
escritores, Micus cartografa um espaço que conduz apenas a si.
Com
Lawrence Fields, Linda Oh e Joey Baron, Lovano e Douglas estreiam em disco
‘Destination Unknown’ e ‘To Sail Beyond the Sunset’, duas composições que, como
quem não quer a coisa, Wayne Shorter lhes enfiou debaixo do braço. Cada um dos
seus solos é uma pegada deixada na estrada que leva ao paraíso.
Começa
por ‘En la orilla del mundo’, e contrabaixista e pianista fazem como os versos
da canção, a cada passo tingindo de púrpura o seu destino. Em Tóquio, há dez
anos, transformaram o palco do Blue Note num berço, acalentando passado e
futuro. Haden guardou a gravação e quis deixá-la em testamento.
Expandindo
qualquer possibilidade nestes longos dias de estio, eis o Barenboim de “Ao
Luar”, o Michelangeli de “Imagens”, o Zimerman dos “Prelúdios”, o Pollini dos
“Estudos”, o Gilels de “Peças Líricas” ou a João Pires dos “Noturnos”. Com
pianistas assim, falar em compositores até parece despropositado.
“El Sistema 40 – A Celebration” (Deustche Grammophon,
2015)
Dir-se-ia
que tocam como se a sua vida dependesse disso, mas a verdade é que nunca
deveria ser de outra maneira. Celebrando 40 anos do sistema venezuelano de
administração da formação musical, eis o mais transformativo – Dvorák,
Ginastera, Beethoven – nas mãos da orquestra e do quarteto Simón Bolívar.
“The Bach Recordings” (L’Oiseau – Lyre, 2015)
Tal
como há quem à mesa só coma fruta da época, também houve quem, na música, apenas
tocasse com instrumentos de época. Hogwood foi um expoente da tendência – ora
retrospetiva, ora prospetiva – e os recursos de que se serviu na linhagem dos
Bach permanecem intrigantes e exemplarmente reconstitutivos.
“The Decca Sound – Mono Years (1944-1956)” (Decca,
2015)
São gravações que mantêm uma surpreendente profundidade e uma inesperada transparência. Ouvi-las é como passar uma tarde de verão em torno de um velho álbum de retratos a descobrir segredos no que se julga saber de cor: o Stravinsky de Ansermet, o Mozart de Curzon, o Bach de Fournier, o Beethoven de Gulda.
São gravações que mantêm uma surpreendente profundidade e uma inesperada transparência. Ouvi-las é como passar uma tarde de verão em torno de um velho álbum de retratos a descobrir segredos no que se julga saber de cor: o Stravinsky de Ansermet, o Mozart de Curzon, o Bach de Fournier, o Beethoven de Gulda.
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11 de julho de 2015
Steve Coleman and The Council of Balance “Synovial Joints” (Pi Recordings, 2015)
O chorrilho de distinções
institucionais dos últimos meses (prémio Artista e prémio Impacto da Fundação
Doris Duke; subsídio do New Music USA; bolsa Guggenheim; subvenção Génio da
Fundação MacArthur) elevou definitivamente a cotação de Steve Coleman, a ponto
deste “Synovial Joints” estar a ser recebido por membros da imprensa
norte-americana como um acontecimento com traços de ineditismo. Ter-lhes-á
faltado a capacidade de precisar a atividade do saxofonista durante uns anos,
só pode. Pois de outro modo não se explica o pouco que têm falado de “Genesis”,
o álbum que a BMG francesa editou em março de 1998 e que já na altura Coleman
atribuía ao The Council of Balance (há entre a formação atual e a de outrora,
aliás, dois elementos em comum: o percussionista Ramón García Pérez e o
trombonista Tim Albright). Dessa forma, por exemplo, não se espantariam com o
tanto de díspar que agora correlaciona (música improvisada, música orquestral,
tipologias de músicas tradicionais, etc), embora Coleman prefira certamente a
interpretação de que está apenas a pôr a nu aqueles nós mais profundos que sob
a superfície de todas as coisas se ocultam. Ainda não é desta que a parte mais
visível das suas criações se livra do borboto do hermetismo (o disco cruza
referências a articulações sinoviais com monofonia subsariana ou druidismo
celta com egiptologia). No entanto, talvez seja verdade, sim, que a sua
produção nunca se adequou tão bem à sua inventividade como aqui. Ou que, à
frente de uma vintena de músicos, jamais empregou semelhantes meios próprios
para provar o quão dispensa métodos alheios.
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