30 de abril de 2016

Bill Evans “5 Original Albums” (Verve, 2016) & “Some Other Time: The Lost Session from the Black Forest” (Resonance, 2016)



Helen Keane recordava o instante em que conheceu pessoalmente Bill Evans: “O Gene Lees achava que eu devia agenciar o Bill e levou-me a ouvi-lo no Village Vanguard. Apresentou-mo e a verdade é que simpatizámos logo um com o outro”, conta ela com a maior das naturalidades em “Stormy Wheather: The Music and Lives of a Century of Jazzwomen”, de Linda Dahl. Lees, que na altura namorava Keane e vinha de largar o cargo de editor na Down Beat, confirma-o nas cruentas notas de apresentação que escreveu para a caixa com a integral do pianista na Fantasy mas dispõe o matiz de outra forma: “A Helen era uma das managers mais capazes do meio artístico, com um papel preponderante no arranque das carreiras de Harry Belafonte ou de Marlon Brando. Levei-a a ver o Bill. ‘Oh, não,’ diz ela, para aí ao fim de 16 compassos, ‘este não – este pode vir a partir-me o coração’. Quão profético foi esse seu reparo.” Bill Evans trabalhou com Helen Keane, que entretanto se tornou produtora dos seus discos, de 1962 até 1980, o ano em que morreu. De modo lapidar, Lees chamou-lhe “o mais longo suicídio da História”.

São relações que agora saltam à memória. Aliás, quando a Riverside se afundou, foi Keane quem conduziu Evans à Verve lançando-lhe uma boia de salvação. E a escolha de temas como ‘What Kind of Fool Am I?’, ‘Everything Happens to Me’ e ‘Why Was I Born?’ para a última sessão de estúdio na editora de Orrin Keepnews, fixada a 10 de janeiro de 1963 mas lançada vinte anos mais tarde, em “The Complete Riverside Recordings”, ilustram bem o estado de espírito de Evans no momento. Em 1983, nas notas que redigiu para “The Interplay Sessions”, outro título com material de arquivo, Keepnews foi perentório: “Era eu que assinava os cheques na Riverside. E, dada a sua constante necessidade de liquidez, não era fácil ser-se ao mesmo tempo amigo, produtor e editor do Bill. Não gostava da ideia de registar música sem intenção de a editar. Mas ir acumulando datas, fazendo-lhe adiantamentos, era a única opção ao nosso alcance. Não fosse o seu problema, não creio que alguma vez tivesse gravado estes álbuns.”

Fala-se de algo a que Whitney Balliett aludiu num texto perspicaz para a The New Yorker, depois integrado em “Goodbye and Other Messages: A Journal of Jazz, 1981-1990”: “Quando tocava, afastava-se uns centímetros do piano, com as costas completamente dobradas para a frente e a testa a roçar o teclado. Mantinha as mãos planas, e durante a década final da sua vida raramente as desviou do registo intermédio, como se estivessem invisivelmente atadas ao Dó central. Esta postura abjeta, quase oratória, sugeria uma série de coisas: que Evans estava a prestar homenagem ao seu instrumento; que estava tão debilitado pelo consumo de drogas que não se conseguia pôr direito; que vivia subjugado pela timidez. Esta última era provavelmente verdade, e produzia um estranho efeito numa forma de tocar que permanecia uma disputa entre o desejo intenso de praticar uma música totalmente privada e o idêntico desejo intenso de expressar a sua alegria por ter encontrado semelhante música dentro de si.”

E dir-se-ia que a sua associação à Verve, não obstante a repetição em triplicata de qualquer testemunho seu (a qual, em 1997, deu origem aos indiscretos 18 CD de “The Complete Bill Evans on Verve”) e ter de lidar com um comité composto por Lees, Keane e Creed Taylor (que administrava o pagamento da sua renda de casa e das suas contas da água, telefone, gás e luz só para evitar pôr-lhe dinheiro vivo no bolso), resultou numa fase de enorme contentamento a fazer aquilo de que mais gostava. “5 Original Albums” remete para aí e reúne “Trio 64” (com Paul Motian e Gary Peacock), “A Simple Matter of Conviction” (de 1966, com Shelly Mane e Eddie Gomez), “Further Conversations with Myself” (de 1967, a solo), “At The Montreux Jazz Festival” (de 1968, com Gomez e Jack DeJohnette) e “What’s New?” (de 1969, com Jeremy Steig, Gomez e Marty Morell). É uma seleção tão boa como outra qualquer, quiçá determinada pela disponibilidade atual destas referências no mercado fonográfico, embora, resumindo-se a fac-similar originais, não inclua as faixas extra que reedições anteriores trouxeram a lume. Mas cá está o coloquialismo do costume, a mesma dedicação a aspetos triviais do songbook e uma equivalente obrigação de experimentar com fórmulas estafadas, a transferência para a relação entre tónica e dominante das complexidades da vida em casal, a capacidade de inovação que só relutantemente se lhe reconhecia, improvisações que mostram nos standards o que exames de raios-X põem a nu em quadros famosos.


Também “Some Other Time”, em oportuno resgate aos baús da MPS, invoca o período – e o engenho de Keane, pois com a saída de Taylor para a CTI desaparecia um aliado seu na Verve e havia que fazer pela vidinha, não obstante o ressurgimento de Keepnews na Milestone ter acabado por tornar supérflua a associação do seu agenciado a qualquer outra editora – através de uma gravação inédita de Evans, Gomez e DeJohnette captada cinco dias após o concerto do trio em Montreux, para o qual, por sinal, tinham sido convidados por intermédio de Gene Lees. Nem de perto, nem de longe, se ultrapassava a inadequação do baterista ao papel que tinha de desempenhar, mas um terço dos temas (em duo com Gomez) aproxima-se da excelência e, contrariando Balliett, as extremidades do piano estão menos entregues ao cotão, revelando um Evans inquieto, de um lirismo ainda mais magoado. Fez-lhe bem passar pela Floresta Negra (a MPS tinha sede em Villingen) e, ao que tudo indica, e pelo menos Gomez e DeJohnette assim o garantem, ao longo de um mês de residência no Ronnie Scott’s este trio veio a cumprir o seu potencial. Há aqui, até, uma ‘Turn Out the Stars’ que aponta já nesse sentido, bela e desencantada, capaz de lembrar um poema de Thomas Hardy, que Evans tanto lia, em que o brilho das estrelas serve apenas para sublinhar a falta que a luz faz na Terra.

Sem comentários:

Enviar um comentário