23 de abril de 2016

Masabumi Kikuchi "Black Orpheus" (ECM, 2016)



É quando os meninos perguntam a Orfeu se é verdade que ele consegue fazer o sol nascer com as notas do seu violão que pela primeira vez no filme de Marcel Camus se escuta ‘Manhã de Carnaval’. Agora, por conhecer uma história que até o destino enfureceu – essa, a de Orfeu e Eurídice – e talvez por tão bem saber o que é ser-se tocado pela tragédia, Masabumi Kikuchi converte-a num túmulo para a quarta-feira de cinzas trocando a aurora pelo crepúsculo. É que, determinado a superar as dificuldades da vida, como as personagens de “Orfeu Negro”, também ele teve um dia de partir morro acima em busca de felicidade, no caso virando as costas a uma Tóquio reduzida a escombros pelas bombas dos B-29. Por sinal, este “Black Orpheus” foi precisamente gravado na capital japonesa em outubro de 2012. Excetuando o tema de Bonfá e, em encore, ‘Little Abi’, é composto de improvisações: ‘Tokyo Part I’, ‘Part II’ e assim sucessivamente, como se Kikuchi não quisesse mascarar o facto de nem ele ao certo saber o que cada uma delas podia significar. É uma ambiguidade adicional às que já o saturavam.

Aliás, marcado quiçá por uma angústia que até ao momento nunca tinha figurado de modo tão flagrante entre as suas fraquezas, trata-se de um conjunto de baladas algo mutilado, este: há melodias plenas de dissonância que levam a becos sem saída; há contrapontos que são como duas correntes marítimas a migrar para direções opostas; há blocos de gelo com as conceções dos impressionistas à deriva; há blues feitos de fumo; há, até, progressões harmónicas que apontam o caminho dos standards mas que ao virar da esquina se provam traiçoeiras. Nas notas de apresentação, Ethan Iverson apelida-as de “adágios notáveis”, pouco depois de sugerir que a arte tardia de Kikuchi se tornava “inquestionavelmente nipónica: distante, subtil, precisa, opaca”. Mais do que o retrato do país do sol nascente que o líder dos Bad Plus parece querer fazer, em que, conforme as circunstâncias, se incluem muitas outras coisas e, inevitavelmente, algumas destas se excluem, importa reconhecer a validade com que os adjetivos de que se socorre se aplicam ao que Kikuchi aqui faz. Não é uma surpresa, para quem o recorda dos Tethered Moon (com Paul Motian e Gary Peacock) ou do Trio 2000, mas será chocante para quem se lembre apenas dos seus LP com Sadao Watanabe e Terumasa Hino ou daqueloutros de fusão, como “Susto”, que gravou a solo. Quando o disco termina é como se tivesse acabado a canção com que um monge se despede de um santuário em ruínas - ouvi-lo é quase um ato de profanação. Kikuchi morreu a 6 de julho de 2015. Este é o seu testamento. É igualmente um último refúgio para o seu orgulho.

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