25 de junho de 2016

Beethoven: Sinfonia Eroica (Alia Vox, re. 2016)



Na capa desta reedição (o original é de 1997 e a gravação de 1994) destaca-se um pormenor de “A Liberdade Guiando o Povo”, de Delacroix, porventura para que melhor se veja o barrete frígio vermelho, símbolo da Revolução Francesa e dessoutros acontecimentos a que se alude nas lombadas interiores do CD através da reprodução de “A Festa da Unidade e Indivisibilidade da República, de 10 de agosto de 1793”, de Pierre-Antoine Demachy, famoso por retratar títulos da tirania feudal atirados às chamas na atual Praça da Concórdia, em Paris (no mesmíssimo agosto em que, aí, a poucos metros da guilhotina que decapitou Maria Antonieta, Madame Roland ou Olympe de Gouges, e sem atentar à ironia, se edificou a feminina Estátua da Liberdade). Trata-se de figuras escolhidas pela Alia Vox para representar o que, na caracterização desta “Sinfonia Nº 3 em Mi bemol maior”, Savall definiu como a “explosão de um drama interior” e a “sublimação de ideais mitológicos e revolucionários”. Refere-se à potência emancipadora da própria Eroica, que, na história da música, e como Romain Rolland dizia, foi “como a caravela de Colombo, a primeira a chegar a um continente desconhecido”, e àquilo que tanto a associa à precedente “As Criaturas de Prometeu” quanto à evocação de Napoleão que a seu pretexto normalmente se faz. Isto, porque Beethoven considerou dedicá-la ao futuro imperador numa altura em que se compunham odes jacobinas a comparar Napoleão a Prometeu sem se saber o que lhe reservava o destino. A intenção, como é óbvio, é a de chamar a atenção para o verdadeiro assunto da sinfonia: a libertação dos grilhões do passado e daquela conjugação de medos que impede que o mundo se chegue a transformar. Como se sabe, recorrendo a instrumentos de época, Savall estava também a falar para dentro, sugerindo que é possível abraçar o antigo e simultaneamente rejeitar o arcaico. Em termos de tempi, timbres, cor ou conteúdo harmónico, uma das mais estranhas e felizes interpretações da obra de que há memória.

Peter Brötzmann/Heather Leigh “Ears Are Filled With Wonder” (Not Two, 2016)




Invocava a música como poucos, Kenneth Patchen. Na sua escrita, frequentemente paroxística, era uma forma súbita e nada pacífica de dar voz ao corpo, ao sangue, à escuridão, à guerra e ao silêncio. Foi-se deixando atrair pelo jazz ao longo dos anos. E, aí, não admira que lhe retribuísse a atenção Peter Brötzmann, porventura o mais intransigente, intenso, intimidante, visceral, vindicativo e viperino entre os seus praticantes, capaz de tornar palpáveis a cada sopro as coisas imprevisíveis e vólucres da vida. Dedicou-lhe “14 Love Poems”, em 1984, o mais belo dos seus discos a solo, e, duas décadas depois, à frente do seu Tentet, “Be Music, Night”, com o ator Mike Pearson lendo “The Collected Poems”. Agora, que tem a seu lado Heather Leigh, trá-lo de novo à lembrança através de um título que remete para “I’d Want Her Eyes to Fill with Wonder”, o poema de Patchen em que se lê: “Quereria que os seus olhos se enchessem de espanto/ Que os seus lábios se entreabrissem/ Que o seu peito se arrepiasse ao meu toque/ E, oh, dir-lhe-ia que a amava/ Que o mundo começa e acaba onde ela está.”

Acerca da inusitada parceria, numa entrevista à “The New Noise”, Leigh faz eco disto mesmo, afirmando: “Vimos de sítios diferentes: ele é um homem, eu sou uma mulher, ele tem quase o dobro da minha idade. No entanto, temos maneiras muito semelhantes de encarar os nossos instrumentos. Mas o que fazemos não é free jazz. É uma música nova, sensual e romântica, cheia de mistérios que estamos empenhados em desvendar. Tem tudo a ver com sexo.” Toca Brötzmann, o tarogato, o saxofone tenor ou o clarinete baixo, e as notas que reproduz vão ficando com o contexto alterado à medida que à sua volta, manipulando as alavancas e os pedais da sua guitarra pedal steel, Leigh o projeta em paisagens tão virtuais quanto as que, em cinema, o criador de efeitos especiais gera sobre aquelas telas verdes e azuis. Juntos, recordam outro verso de Patchen: “Temos a nossa música e isso chega-nos para conquistar o mundo.”

18 de junho de 2016

Martha Argerich “Early Recordings: Mozart; Beethoven; Prokofiev; Ravel” (Deutsche Grammophon, 2016)



Mesmo que do seu aniversário - fez 75 anos no dia 5 deste mês - quisesse aliviar a carga celebrativa, aí estão as editoras, determinadas a assinalar a efeméride, esquadrinhando cada palmo das respetivas coleções, virando acervos do avesso, prontas a sugerir que uma data importante na vida de Argerich tem equivalência na história da música. Nisto, como se sabe, albarda-se o burro à vontade do dono. Por isso, trata-se de um ritual com o qual a pianista terá feito as pazes, apesar das complexas relações que estabeleceu com as muitas chancelas por que passou – “Não se vive com a Martha sem se discutir – é impossível”, afirmou Jurg Grand, seu produtor na EMI e ideólogo do “Progetto Martha Argerich”, agora na 15ª edição. É daí que provém “Martha Argerich & Friends: Live from Lugano 2015” (3 CD, Warner), o retrato das festividades do ano passado, com Kovacevich, Angelich e Capuçon entre os convidados e o habitual arco-íris de compositores suspenso sobre os Pré-Alpes. Já em “The Complete Sony Recordings”, também acabado de sair, se destacam recitais com James Galway e Ivry Gitlis. Na DG surge “Chopin: The Complete Recordings”, mas é através deste “Early Recordings” que o selo alemão põe a cereja em cima do bolo. São gravações de 1960 (a exceção é a ambígua “Sonata para Piano Nº 7 em Si bemol maior”, de Prokofiev, captada em 1967), inéditas, com Argerich pelos seus 18-19 anos, registadas nos estúdios das emissoras WDR Köln e NDR Hamburg, e que trazem, pela primeira vez, para a discografia oficial da argentina a atlética “Sonata para Piano Nº 18 em Ré maior”, de Mozart, a experimental “Sonata para Piano Nº 7 em Ré maior”, de Beethoven, e a volátil “Sonata Nº 3 em Lá menor”, de Prokofiev. Ainda assim, é graças ao que faz na “Toccata”, do russo, e no “Gaspard de la nuit”, de Ravel, que Argerich traz à memória o que Nikita Magaloff, seu professor, disse um dia a seu respeito: “Não se pode esperar que um cavalo de corrida ande a trote.”

Barry Guy "The Blue Shroud" (Intakt, 2016)



Contrariamente a um acheiropoieta, este sudário de que fala Barry Guy é farto em impressões digitais. Pelo menos na perspetiva que o vincula à cortina azul que, a 5 de fevereiro de 2003, durante uma conferência de imprensa de Colin Powell junto à sala de reuniões do Conselho de Segurança das Nações Unidas, cobria a famosa tapeçaria que reproduz “Guernica”. Segundo Guy, a imagem teria gerado “uma mensagem demasiado literal acerca dos horrores da guerra”, pelo que “foi necessário saneá-la”. Calcula-se que tenham sido as equipas televisivas a solicitar a colocação de um pano de fundo neutro no local a fim de atenuar a poluição visual das linhas de Picasso nos respetivos enquadramentos, coisa que, por sinal, nem era a primeira vez que acontecia, mas, seja como for, trata-se de um contexto decisivo para a compreensão deste “The Blue Shroud”. Até porque, ao longo dos seus 70 minutos, além de se cantarem versos de Kerry Hardie que enumeram símbolos de “Guernica” (o guerreiro caído com a mão esquerda estigmatizada, a mãe lamuriante com o filho morto nos braços, a pomba, etc.), escutam-se referências a “armas de destruição maciça” e à “Resolução 1441”. Aliás, a terminar, Savina Yannatou repete “Resolução 1441” em inglês, espanhol e português, o que remete para a cimeira das Lajes de 16 de março de 2003, quando Bush, Blair, Aznar e Barroso explicaram que “ou o regime iraquiano se desarma por iniciativa própria ou será desarmado à força.” Nesse instante quase se disputa esta espécie de damnatio memoriae que caracteriza a peça. Mas há outro paralelismo com “Guernica”, quando se evocam elementos do cristianismo vindos da história da música – das “Sonatas do Rosário”, de Biber, à “Missa em Si menor”, de Bach. É então que se percebe que, tal como a de Picasso, esta obra – executada por catorze intérpretes de exceção, e onde se destacam Michel Godard, Agustí Fernández, Ben Dwyer, Maya Homburguer e Michael Niesemann – se destina aos tiranos que um dia pensaram nisto, que Éluard, em “A Vitória de Guernica”, assim resumiu: “A vossa morte vai servir de exemplo.”