25 de junho de 2016

Peter Brötzmann/Heather Leigh “Ears Are Filled With Wonder” (Not Two, 2016)




Invocava a música como poucos, Kenneth Patchen. Na sua escrita, frequentemente paroxística, era uma forma súbita e nada pacífica de dar voz ao corpo, ao sangue, à escuridão, à guerra e ao silêncio. Foi-se deixando atrair pelo jazz ao longo dos anos. E, aí, não admira que lhe retribuísse a atenção Peter Brötzmann, porventura o mais intransigente, intenso, intimidante, visceral, vindicativo e viperino entre os seus praticantes, capaz de tornar palpáveis a cada sopro as coisas imprevisíveis e vólucres da vida. Dedicou-lhe “14 Love Poems”, em 1984, o mais belo dos seus discos a solo, e, duas décadas depois, à frente do seu Tentet, “Be Music, Night”, com o ator Mike Pearson lendo “The Collected Poems”. Agora, que tem a seu lado Heather Leigh, trá-lo de novo à lembrança através de um título que remete para “I’d Want Her Eyes to Fill with Wonder”, o poema de Patchen em que se lê: “Quereria que os seus olhos se enchessem de espanto/ Que os seus lábios se entreabrissem/ Que o seu peito se arrepiasse ao meu toque/ E, oh, dir-lhe-ia que a amava/ Que o mundo começa e acaba onde ela está.”

Acerca da inusitada parceria, numa entrevista à “The New Noise”, Leigh faz eco disto mesmo, afirmando: “Vimos de sítios diferentes: ele é um homem, eu sou uma mulher, ele tem quase o dobro da minha idade. No entanto, temos maneiras muito semelhantes de encarar os nossos instrumentos. Mas o que fazemos não é free jazz. É uma música nova, sensual e romântica, cheia de mistérios que estamos empenhados em desvendar. Tem tudo a ver com sexo.” Toca Brötzmann, o tarogato, o saxofone tenor ou o clarinete baixo, e as notas que reproduz vão ficando com o contexto alterado à medida que à sua volta, manipulando as alavancas e os pedais da sua guitarra pedal steel, Leigh o projeta em paisagens tão virtuais quanto as que, em cinema, o criador de efeitos especiais gera sobre aquelas telas verdes e azuis. Juntos, recordam outro verso de Patchen: “Temos a nossa música e isso chega-nos para conquistar o mundo.”

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