10 de junho de 2016

Schubert: String Quintet – Lieder (Erato, 2016) & Brahms: Vier Ernste Gesänge (Harmonia Mundi, 2016)



É fácil imaginá-lo a ver a neve cair e a espalhar sarampo pelas calçadas de Viena. Com pouco mais de um metro e meio, da rua, dir-se-ia uma criança melancólica a passar a hora do recreio nostalgicamente à janela. Então, de aspeto ausente e sobrancelhas sublinhadas pela fadiga, deixava-se congelar, até a sua vigília se confundir com a de um busto. Tossia, resignado, e é possível que a vacuidade do seu olhar, mas também o misto de meiguice e receio que trazia estampado no rosto desde a infância, lembrassem o semblante de um bovino. Febril e pustulento, sem apetite, com a boca beliscada por mucosas e dores no corpo, aos 31 anos, e com a morte anunciada, Franz Schubert (1797-1828) caía no limbo.

É uma dramatização comum, embora muitos tenham para si que a conjetura em sentido contrário não se provaria menos verdadeira. Como Britten, por exemplo, que considerava que os “dezoito meses mais produtivos e férteis da história da música” correspondem ao “período em que Schubert compôs ‘Viagem de Inverno’, a ‘Sinfonia em Dó maior’, as três últimas sonatas para piano ou o ‘Quinteto de Cordas em Dó maior’.” Asserção que o Ebène confirma. Na descrição dos seus membros, o quinteto, com um segundo violoncelo (Capuçon) no lugar de uma mais canónica segunda violeta, é “uma obra-prima, de um equilíbrio magistral: desafia mas não intimida, é inefável mas acessível, digna de admiração mas energizante.” Trata-se do canto do cisne do seu compositor, não fosse “Schwanengesang”, um conjunto de canções póstumo, reclamar o direito a invocar em exclusivo a metáfora. Agora, torna a sentir-se aquele seu irresistível ímpeto, apto em dissipar rumores e recriminações e cuja capacidade de produzir trabalho parece depender da constante surpresa que é, afinal, e contra todas as evidências, a vida prosseguir de modo normal mesmo quando se vê ameaçada. Indicação de que o sifilítico Schubert não sujeitava à lei marcial os seus instintos e razão para crer que a amargura e a desilusão que o acompanharam no derradeiro estertor não anestesiaram a poesia que lhe corria nas veias. É esse herói romântico que o Ebène recupera, numa interpretação que recorda o que John Gingerich apelidava de “consciência dividida”. Cá estão as invulgares harmonizações, diáfanas num instante e opacas no seguinte, aquelas curvas melódicas, espessas e, em simultâneo, próximas da desintegração, as procissões, as romarias e as fanfarras de um Império alicerçado em estados de alma e empirismo, a milhas do absolutismo Habsburgo.

Em complemento, inspirado pelas Schubertiades e, quiçá, pelo mote para quartetos (“A Morte e Donzela” e “Os Deuses Gregos”, este desenvolvido no minueto do “Rosamunde”, logo vêm à mente) que o lied lhe deu, Raphaël Merlin, violoncelista do Ebène, orquestrou cinco canções de Schubert para quinteto (com Laurène Durantel no contrabaixo) e, para lhes dar voz, convocou Matthias Goerne – o “rei dos barítonos”, como lhe chama nas notas de apresentação. São linhas em que Goerne sabe conferir como ninguém ênfase ao otimismo ou ao pessimismo, tingindo de remorso uma sílaba, aqui, colorindo outra de esperança, acolá. Com a colaboração com o Ebène coincide um CD em que se destacam as “Quatro Canções Sérias”, de Brahms (1833-1897). Como o Op. 32 (este pelos versos de Heine), trazem à ideia o viandante de Schubert não obstante terem sido uma reação, e talvez um consolo, à eminência da morte de Clara Schumann. Vindas da bíblia luterana, começam por sugerir uma saída mas, escutadas a sangue frio, possuem algo de horrivelmente ímpio. Em termos vocais, aliás, são avessas à melodia, mas Goerne consegue o milagre de não se deixar perturbar por tamanha disjunção, como que flutuando sobre as palavras.

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