Sopravam
novos ventos de Moscovo. De certa forma, fruto de reformas e reformulações
várias que balançavam o presente numa gangorra, era a autoridade Imperial de
São Petersburgo que se punha em causa (não por acaso, na raiz etimológica de
Raskólnikov, o apelido do protagonista de um expoente literário do período – o “Crime
e Castigo”, de Dostoiévski – encontra-se a palavra raskol, o que o transforma logo à partida num dissidente, num
cismático). Na sua primeira visita à cidade, tinha ele 20 anos, Mussorgsky
(1839-1881) sentiu-se a renascer: “Fui até hoje um cosmopolita”, escrevia, numa
carta endereçada a Mily Balakirev, um mentor inicial, “mas, agora, todas as
coisas russas me são queridas. E é como se apenas neste instante tivesse
começado a amá-las”. Expressava um sentimento que o iria acompanhar até ao fim
dos seus dias. Em 1868, era a Rimsky-Korsakov (como ele, outro kuchkist; isto é, outro membro do Grupo
dos Cinco, a mão-cheia de compositores nacionalistas que reagia adversamente
aos ditames do Conservatório de Rubinstein) que disso mesmo fazia eco: “Em
termos técnicos, podemos dizer que o desenvolvimento da prática sinfónica foi liderado
por alemães. Ao pensar, o alemão expõe uma teoria, que depois vai tentando
provar; já os nossos conterrâneos provam primeiro e só depois se divertem com
teorias.” Nesta frase, tanto quanto a rejeição ostensiva dos convencionalismos
associados à tradição musical alemã, de que o Conservatório de São Petersburgo seria
o zelador, Mussorgsky parece retaliar promovendo a defesa do autodidatismo de
que o acusavam. É um facto que na sua oposição ao cânone ocidental não teria muito
por onde se guiar – havia Glinka, como é óbvio, e umas recolhas etnográficas realizadas
por Balakirev. Mas as mais distintas caraterísticas da sua produção foram invenção
pura. Nessa perspetiva, é paradigmática esta suíte que escreveu para piano, em
1874, em reação a uma retrospetiva organizada em torno da obra de mais um herdeiro
dos eslavófilos, o pintor Viktor Gartman, e que Ravel orquestrou em 1922. Nas
mãos de Dudamel, lamentavelmente, revela-se tudo tão achatado quanto uma tela e
só a custo se absorve o impacto daqueles genes vindos das margens do Volga
(mutabilidade tonal, heterofonia, etc.), a par do espanto daqueloutros artifícios
não menos insólitos mas de todo ausentes da música folclórica russa (em termos
de escalas, modulações, etc.) que lhe conferem as exóticas feições. Pior: o
maestro propõe como complemento a valsa de “O Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky,
a típica peça colonizada pelo fungo europeu que enchia Mussorgsky de náuseas.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
25 de março de 2017
18 de março de 2017
Agenda: Shelter + JazzFest
Passando
os olhos pelo alinhamento de “Shelter”, o disco do quarteto homónimo composto
por Ken Vandermark (palhetas), Nate Wooley (trompete), Steve Heather (bateria)
e Jasper Stadhouders (guitarra elétrica e baixo), treme-se perante a inesperada
evocação da famosa “Saga de Njáll, o Queimado”, receando o ressurgimento
daquele jazz movido a uivos e a hormona macho, blindado por um arnês e cegado pela
cólera e pronto para lavar a sangue e suor a honra ferida no campo de batalha
mais próximo. Depois, respirando fundo, lá se escuta ‘Burnt Njal’ e o resultado
não é de todo o que se esperava – aliás, dir-se-ia que Wooley, que a compôs,
aproveitou a associação a esse universo particularmente viril do medievo
islandês para meditar acerca das próprias limitações da música improvisada tal
como a promove a maior parte dos seus praticantes. Isto é, estará de acordo com
o que salientou Ármann Jakobsson: que, na essência, a “saga critica o conceito
de base daquela misógina sociedade ao demonstrar que o ideal de masculinidade é
tal maneira restritivo que se torna opressivo para o indivíduo e destruidor
para o grupo.” Por isso, na sua estrutura, a peça possui farrapos de marchas e
malhas de fanfarras, sim, mas mais como uma meditação acerca do controlo de
impulsos do que outra coisa qualquer. É um assunto há muito na ordem do dia.
Por exemplo, falava com Vandermark em agosto de 2008 e dizia-me ele que um dos
seus principais interesses enquanto compositor era “precisamente essa dinâmica
entre o que é escrito e o que é improvisado”. Ou seja, que quando se escreve
para improvisadores é preciso ter em mente que, no fundo, se está a “enquadrar
uma música espontânea”. “Temos de conceder espaço suficiente para a liberdade
de cada músico”, continuava, “senão corremos o risco de criar pouco mais que um
conjunto de limitações.” Podia ser o tema do décimo quarto Portalegre JazzFest,
a par, já agora, de outra ideia que o norte-americano partilhava: “Olhar para o
passado ajuda a encontrar soluções para desafios criativos iminentemente
contemporâneos”. É um credo extensível ao conjunto coliderado por João Hasselberg e Pedro Branco, que tem disco
novo, “From Order to Chaos”, bem como àqueles grupos nórdicos como Ballrogg (Klaus
Ellerhusen Holm, Roger Arntzen e David Stackenäs) ou Friends and Neighbors (André Roligheten, Thomas Johansson, Oscar
Grönberg, Jon Rune Strom e Tollef Ostvang), que, lembrando Njáll, se preparam para
incendiar o palco do CAE e ficar queimados pelo sol alentejano.
Shelter
23
março, quinta-feira, 22h, ZDB, Lisboa
24
março, sexta-feira, 21h30, CAE, Portalegre
14º
Festival Internacional de Jazz de Portalegre – Portalegre JazzFest
23
de março a 1 de abril, Centro de Artes do Espetáculo de Portalegre
“Hustle! Reggae Disco” (Soul Jazz, re. 2017)
Soube a
pouco, a edição inicial de “Hustle!”, em 2002, quando se assinalavam os 40 anos
da independência da Jamaica e, quiçá crucialmente, os dez da editora londrina.
Não será, por isso, de estranhar que surja agora a “expandida versão” dessa
peregrina antologia, ainda mais farta em ómega 3. Mas, no fundo, é pena que se
tenha ficado por aí, adicionando cinco novos temas aos oito primitivos e
prolongando aquela contínua aversão ao óbvio que é apanágio da Soul Jazz. Pois
não é desta que se incluem aqui ‘Disco Reggae Beat’, de Sheila Hilton, qualquer
uma das canções de “Reggae Disco Rockers”, de Derrick Harriott, ou, de modo
axiomático, ‘The Hustle’, de Byron Lee. Todavia, ganha-se nova oportunidade
para tornar claro o que nem todos compreenderam à primeira: que, mais
importante do que comparar ‘Ring My Bell’, pelas Blood Sisters, à versão
original, de Anita Ward – e de repetir o exercício ad nauseam para ‘Don’t Stop ‘Til You Get Enough’ (Derrick Laro e
Trinity/Michael Jackson), ‘I’m Every Woman’ (Latisha/Chaka Khan), ‘Don’t Let It
Go To Your Head’ (Black Harmony/Jean Carn), ‘Rapper’s Delight’ (Xanadu e Sweet
Lady/Sugarhill Gang), ‘Upside Down’ (Carol Cool/Diana Ross), ‘In The Rain’ (Ernest
Ranglin/Dramatics) ou ‘Ain’t No Stopping Us Now’ (Risco Connection/McFadden
& Whitehead) –, será relembrar como, através da peculiar câmara de ecos do dub e da adoção em single de doze polegadas do que na Jamaica se produzia já com outro
tipo de gestão do espaço em acetatos, se dilatou exponencialmente a
expressividade dramática do disco sound
no momento exato do seu declínio artístico e apogeu comercial (aproximadamente
entre 1976 e 1979, da fase do Studio 54 e do “Saturday Night Fever”, digamos, à
Disco Demolition Night). Dito de outra maneira, o que esta compilação traz à
memória é, antes, o período do Paradise Garage, quando se tornaram a urdir em
fibras naturais aquelas malhas de “liberdade e irmandade e compaixão”, como
diziam Bill Brewster e Frank Broughton em “Last Night a DJ Saved My Life”, que
a indústria realizava única e exclusivamente a partir de polímeros sintéticos.
11 de março de 2017
Mary Halvorson Octet “Away With You” (Firehouse 12, 2016)
Com Mary
Halvorson as coisas nunca são bem o que parecem. Num tratado humorístico acerca
da origem das espécies criativas norte-americanas poder-se-ia, até, falar de um
carácter ambígeno na sua produção: Mary vem de Brookline, no Massachusetts,
embora dê mostras de proceder de estirpes artísticas naturais de Brooklyn, em
Nova Iorque. Ou seja, entre muitas outras coisas, e à primeira vista, sobressai
na sua música uma adesão simultânea a duas condições radicalmente diferentes:
uma que se vê obrigada à formalidade e outra que tudo deve à coloquialidade.
Prolongando a analogia, e generalizando, diga-se por exemplo que Brookline,
rodeada de universidades, é a área com mais doutorados per capita dos EUA, enquanto Brooklyn, um dos epicentros da arte de
rua, se destaca por albergar aquele tipo de coletivos que desafiam preceitos
académicos. Na prática de Mary, porém, nenhuma tendência prevalece. Pelo
contrário, consideram-se cada vez mais aspectos e variáveis dos dois campos: há
composições que se assemelham a charadas musicais e que no entanto saltam da
partitura como forças da natureza; há improvisações de ímpeto inquebrantável
que se revelam francamente lúcidas no contexto da expressão de grupo. Isto é,
todos os elementos se envolvem e, contudo, nenhum se deixa absorver
inteiramente pelo outro. Talvez seja de família: o pai de Mary é arquiteto
paisagista.
Mas nada é assim tão simples. E menos ainda este “Away With You”, o
melhor disco da guitarrista até ao momento e aquele em que se encontra a gerir
mais forças contrastantes: as de um septeto, que se imagina a ansiar por estes
temas, a sentir-se fascinado por eles, a desejá-los e a ter consciência que não
está inteiramente preparado para os possuir (Susan Alcorn na guitarra pedal steel, Jonathan Finlayson à trompete,
Jon Irabagon no saxofone alto, Ingrid Laubrock em tenor, Jacob Garchik ao
trombone, John Hébert no baixo e Ches Smith à bateria). Ouvi-los é como olhar
para o grafismo da capa e pensar: que ilustração é aquela? Serpentinas ou
línguas de fogo, cobras ou fitas de cetim? Talvez seja isso tudo ao mesmo
tempo.
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