8 de junho de 2019

África Negra "Alia Cu Omali" (Mar & Sol, 2019)

David Sinclair, um geneticista dedicado à ciência do prolongamento da vida, recorre frequentemente a uma metáfora fonográfica: envelhecemos, diz, porque o nosso ADN é digital, enquanto a expressão dos nossos genes é analógica – conforme repetiu num podcast recente, o genoma é um CD lido pelas cabeças gastas de um gravador de cassetes, e “vamos perdendo a capacidade de ler os genes certos no momento exato, como fazíamos quando tínhamos 20 anos”. Não tendo de praticar gerontologia experimental, o desafio que esta formação da África Negra aqui enfrentou é mais ou menos o mesmo: como aumentar a esperança de vida da banda a partir de um ponto de restauro criado em 1989. Daí a vontade de cobrir “Alia Cu Omali” com a solene poeira do latim e pensar que quer dizer qualquer coisa tão fatídica, final e lapidar quanto “os dados estão lançados” (alea iacta est) ou “a história está acabada” (acta est fabula) – na realidade, o título traduz-se do são-tomense por “Areia e Mar” mas não será por isso que soa menos definitivo, nem que seja, vá lá, por sugerir a firme indiferença do mundo natural face às nossas múltiplas venturas e desventuras.

No caso da África Negra, a representação da sua ascensão e queda foi efetivamente levada a cena numa praia, durante uma digressão, em Cabo Verde, quando o núcleo da banda se dividiu ao meio, ficando de um lado os que queriam usar as ilhas como um trampolim e partir para os EUA e do outro os que desejavam regressar a São Tomé e Príncipe. “Era uma altura de mudança!”, exclamava João Seria há um punhado de anos, enquanto fazia equilibrismo numa ruela da Cova da Moura, a agilidade dos seus movimentos a dar mostras de lhe acompanhar a velocidade nas ideias. “Sabe, um jovem tem sempre vontade de saltar por aqui e por acolá. Dos onze, ficámos sete para trás porque tínhamos um destino que não se cumpriu. Estava muita coisa a mexer no mundo.” De facto, em 1989, ruíam oficialmente as ditaduras na Polónia e no Brasil, protestava-se na Praça de Tiananmen, desmantelava-se a fronteira entre Hungria e Áustria, discutia-se o fim do Apartheid, caía o Muro de Berlim, os Ceausescu eram executados, Havel subia ao poder, MPLA e UNITA davam um abraço e até em São Tomé se falava em sistema pluripartidário. Com a África Negra, desabafava Leonídio Barros: “Corríamos atrás da fama pensando que ia durar para sempre.”

João e Leonídio (cantor e guitarrista) contam-se entre os sobreviventes dessa era. No verão de 2014, quando falavam ao Expresso, reagrupavam-se e punham fim a 25 anos de desencontros – quando lhes perguntei há quanto tempo não gravavam juntos, no fundo, ficaram a olhar um para o outro, arrancando calendários das paredes da memória, e Leonídio disse assim: “Desde meados de 80. Mas nunca mais foi o mesmo. Aquele som, aquela música, perdeu-se.” Pois, não só não se perdeu, como se achou, o que não é bem a mesma coisa – já que o assunto são os clássicos, dando inclusivamente razão, e contra todas as expectativas, a um aforismo de Plínio: em África, há sempre algo de novo. Nessa perspetiva, que a África Negra tenha conseguido gravar em 2019 o melhor disco que devia e merecia ter feito em 1989 é uma superior prova de vida – ainda que inédito comercialmente, este imaculado repertório vem dessa fase. O que por sua vez dá origem a uma enorme lição de humildade: por mais que garanta o acesso a uma página maior da história da rumba são-tomense, “Alia Cu Omali” não deixa de fazer alusão a todas as outras que ficaram por escrever. Talvez por isso se revele mais indispensável a cada audição.

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