31 de agosto de 2019

Holliger/Kurtág: Zwiegespräche (ECM, 2019)


Trémula, hesitante, ensalivada, escuta-se a voz de Philippe Jaccottet, em “Airs”, recitando os sete poemas que estão na base de “Lecture”, de Heinz Holliger, e quem vem à memória é Nonno, em “A Noite da Iguana”, naquela débil e falaz argumentação poética em torno da árvore que nada pede e nada perde e tudo vê. Aí, é-nos apresentado como “o poeta mais velho do mundo”, mas têm de se fazer as contas para Jaccottet, que nasceu em 1925 e admite que mais não faz que “recolher as coisas que, elas mesmas, mais rápida ou, pelo contrário, mais lentamente que uma vida humana, passam”. Quando viu publicados estes poemas, Jean-Pierre Richard reconheceu-lhes a capacidade de surpreender a um nível muito humilde certas manifestações do instinto que permitem às palavras deslizar suavemente pelo ar. Será uma ideia que agrada a Holliger, que na sua peça produz uma música que se acerca daquela que Borges descreveu assim: “Aguda, como que silábica”, a aproximar-se e a distanciar-se no vaivém do vento.

A evocação do argentino não surge por acaso: repartido entre Holliger e György Kurtág, com 37 faixas, e com uma boa dúzia de peças a rondar o minuto, minuto e meio de duração, “Zwiegespräche” é completamente labiríntico. Aliás, pegando em “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”, onde se encontra a tal citação da música aguda, quase se imagina os compositores a dizerem um ao outro que não acreditam num “tempo uniforme, absoluto”, mas sim “em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos”, em “tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou secularmente se ignoram” e que abarcam “todas as possibilidades”. Exemplo disso mesmo é “Die Ros’”, com o suíço e, depois, o húngaro, a musicar os singelos versos de Angelus Silesius: “A rosa não tem porquê/ Floresce porque floresce/ Não quer saber de si/ Nem pergunta se alguém a vê.” Nestes diálogos com o infinito, Holliger com 80 anos, Kurtág com 93, estão, também eles, como Jaccottet (e Nonno): mais do que a pespegar coisas novas ao mundo, a respigar as que o mundo tem tendência a negligenciar. Um estilhaço de cada vez.

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