Cresce a apócrifa milesiana, ou seja, após “Doo-Bop” (Warner, 1992), “Panthalassa”
(Sony, 1998) ou “Everything’s Beautiful” (Sony, 2016), o quinhão discográfico
de Miles Davis que, em rigor, deveria ter sido lançado com asterisco – pois,
independentemente de terem sido organizadas com as melhores das intenções e uma
devoção algo hagiográfica, é discutível que se possam incluir no cânone obras
que não tiveram o trompetista ao comando das operações (Miles faleceu faz hoje exatamente
28 anos, a 28 de setembro de 1991, mal entrado na idade da reforma). No caso, trabalha-se
a partir de sessões de estúdio levadas a cabo entre outubro de 1985 e janeiro
de 1986, aquelas célebres “RubberBand Sessions”, de vida muitíssimo complicada,
que haviam servido postumamente de matéria-prima para um par de temas de
“Doo-Bop” e de que se foram conhecendo os princípios hilárquicos através de álbuns
ao vivo: ‘Wrinkle’ editado em “Live Around the World” (Warner, 1996), ‘Maze’ e
‘Carnival’ registados em julho de 1986 no Festival de Nice e posteriormente
incluídos como complemento à edição especial de “Tutu” (Warner, 2011).
Dir-se-ia,
então, ter chegado ao fim a compreensível frustração de Randy Hall, Vince
Wilburn, Jr., e Attala Zane Giles – os produtores responsáveis pelo que aqui se
escuta –, que, à terceira, se poriam a lamber as feridas e veriam os seus esforços
devidamente recompensados (leia-se “The Last Miles: The Music of Miles Davis,
1980-1991”, de George Cole, para se ter uma ideia do ressentimento que
acumularam por, primeiro, “Rubberband” ter sido posto na prateleira e, segundo,
por alturas de “Doo-Bop”, a Warner ter cedido a sua matriz a Easy Mo Bee sem os
consultar). Infelizmente, e porque se fala mesmo de uma figura destinada ao
culto, Hall, Wilburn, Jr., e Giles – tamanha a vontade de se ficarem a rir por
último, parece – esqueceram-se de que não se deve despir um santo para vestir
outro, porquanto, ao invés de colocarem no mercado a magnífica incongruência
(presume-se) das gravações originais, optaram por usá-las, tão-só, como base
para novas gravações, recorrendo, dizem, a “valores de produção atuais”.
Debalde, esse disco a que se referem fê-lo Robert Glasper, em “Everything’s
Beautiful” (possuem, até, uma convidada em comum: a cantora Ledisi), e,
naqueles momentos de “Rubberband” em que não se sente tanto a sua mão (em ‘This
is It’ ou ‘Maze’), percebe-se que o material de arquivo soa menos datado que o
contemporâneo. Como sempre, quem ri por último é Miles Davis, cujo espectro
assombra todos quanto ousam cruzar-se no seu caminho.