28 de setembro de 2019

Miles Davis “Rubberband” (Warner, 2019)

Cresce a apócrifa milesiana, ou seja, após “Doo-Bop” (Warner, 1992), “Panthalassa” (Sony, 1998) ou “Everything’s Beautiful” (Sony, 2016), o quinhão discográfico de Miles Davis que, em rigor, deveria ter sido lançado com asterisco – pois, independentemente de terem sido organizadas com as melhores das intenções e uma devoção algo hagiográfica, é discutível que se possam incluir no cânone obras que não tiveram o trompetista ao comando das operações (Miles faleceu faz hoje exatamente 28 anos, a 28 de setembro de 1991, mal entrado na idade da reforma). No caso, trabalha-se a partir de sessões de estúdio levadas a cabo entre outubro de 1985 e janeiro de 1986, aquelas célebres “RubberBand Sessions”, de vida muitíssimo complicada, que haviam servido postumamente de matéria-prima para um par de temas de “Doo-Bop” e de que se foram conhecendo os princípios hilárquicos através de álbuns ao vivo: ‘Wrinkle’ editado em “Live Around the World” (Warner, 1996), ‘Maze’ e ‘Carnival’ registados em julho de 1986 no Festival de Nice e posteriormente incluídos como complemento à edição especial de “Tutu” (Warner, 2011).

Dir-se-ia, então, ter chegado ao fim a compreensível frustração de Randy Hall, Vince Wilburn, Jr., e Attala Zane Giles – os produtores responsáveis pelo que aqui se escuta –, que, à terceira, se poriam a lamber as feridas e veriam os seus esforços devidamente recompensados (leia-se “The Last Miles: The Music of Miles Davis, 1980-1991”, de George Cole, para se ter uma ideia do ressentimento que acumularam por, primeiro, “Rubberband” ter sido posto na prateleira e, segundo, por alturas de “Doo-Bop”, a Warner ter cedido a sua matriz a Easy Mo Bee sem os consultar). Infelizmente, e porque se fala mesmo de uma figura destinada ao culto, Hall, Wilburn, Jr., e Giles – tamanha a vontade de se ficarem a rir por último, parece – esqueceram-se de que não se deve despir um santo para vestir outro, porquanto, ao invés de colocarem no mercado a magnífica incongruência (presume-se) das gravações originais, optaram por usá-las, tão-só, como base para novas gravações, recorrendo, dizem, a “valores de produção atuais”. Debalde, esse disco a que se referem fê-lo Robert Glasper, em “Everything’s Beautiful” (possuem, até, uma convidada em comum: a cantora Ledisi), e, naqueles momentos de “Rubberband” em que não se sente tanto a sua mão (em ‘This is It’ ou ‘Maze’), percebe-se que o material de arquivo soa menos datado que o contemporâneo. Como sempre, quem ri por último é Miles Davis, cujo espectro assombra todos quanto ousam cruzar-se no seu caminho.

Agenda: Angrajazz

Há coisa de 15 anos, num quarto de Hotel, em Lisboa, falava com Howe Gelb acerca de uma canção sua: ‘Felonious’ (a tal, que dizia: “The piano’s stealing Lou Reed licks/ Licks that he probably stole/ I’d rather them be Thelonious’/ I’d rather we’d never get old”). Como é óbvio, o título era composto por aglutinação a partir da palavra “felonia” e o nome próprio de Thelonious Monk, mas Gelb fazia questão em explicar que era sobre muito mais do que isso: “É um título composto, sim, mas eu estou mais tentado a considerá-lo imposto”, sugeria, em jeito de provocação. “A História da Música faz-se disso: de apropriações, deslealdades e pequenos atos de traição para com aqueles que vieram antes de nós e de certa forma nos sustentam. Mas também é mais do que isso, claro. Olha, o Monk: aparece como que do nada, com um estilo único e perfeitamente formado. E, no entanto, no jazz, descontando um Bill Evans, consegues lembrar-te de alguém a quem tanta gente tenha deitado a mão nos últimas 60 anos?”. Talvez tivesse razão. Felizmente, o Angrajazz não permite que ninguém o esqueça: depois de Alexander Von Schlippenbach ter apresentado “Monk’s Casino” no Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo em 2007, é a vez do quarteto de Frank Kimbrough [na foto] visitar as mesmíssimas páginas desse cancioneiro (sexta, às 23h30). Kimbrough, que de hoje a oito toca igualmente em Lisboa, no Hot Clube, sabe da poda – lançou no ano passado “Monk’s Dreams: The Complete Compositions of Thelonious Sphere Monk”. Tratar-se-á de um concerto que representa bem o espírito do festival, daqueles empenhado em tornar patente um dilema que outros prefeririam ocultar, que é, no fundo, a contradição inerente a toda a arte que tenha de ser a uma só vez desafiante e atraente, original e passível de decifrar, fraturante e unificadora, acessível e avessa a fórmulas. Ilustram-no ainda Orquestra Angrajazz (quinta, 21h30), Émile Parisien (quinta, 23h30, com Michel Portal como convidado) ou João Mortágua (sexta, 21h30, com um singular sexteto de quatro saxofones e duas baterias que traz à memória a aura apocalíptica do Rova de “The Mirror World”). O festival encerra sábado, com Allan Harris e Miguel Zenón.

21 de setembro de 2019

Agenda: Rentrée


Muito bem: “Jazz & Clássica”. Então, porque não começar por combiná-las? Chega dia 18 de outubro às lojas “Remember Me, My Dear”, uma gravação ao vivo procedente da ‘digressão de despedida’ de Jan Garbarek com o Hilliard Ensemble. Parece que se está a falar de velhas glórias do rock em fim de carreira – mas, na verdade, que agente numa ou noutra música se pode gabar de ter vendido mais de um milhão de exemplares de um disco seu? Nos dias que correm, de facto, só mesmo uma mistura tão fermentada como “Officium” (1994) para espevitar o mercado. Claro que quem prefira o equivalente musical ao composto que se forma a partir da parte insolúvel da matéria orgânica, entretanto, pode esperar por novembro, altura em que a Universal lançará “Beethoven 2020 – The New Complete Edition” e a Warner “Beethoven – The Complete Works” em antecipação do 250º aniversário do mestre. No jazz, já se sabe, não há bustos tão robustos: ainda assim, por mais que se assinalem iminentes edições de Bill Frisell (“Harmony”), Dave Holland (“Good Hope”) e Abdullah Ibrahim (“Dream Time”), terá de se reservar nos escaparates muito espaço para os novos discos (?!) de Miles Davis (“Rubberband”) e John Coltrane (“Blue World”). Agora, quem considere que a música não deve depender de qualidades tão controláveis pode sempre ir vê-la ao vivo. Miguel Zenón (Hot Clube e Angra Jazz), Frank Kimbrough (idem), Brad Mehldau (Caldas Nice Jazz, Figueira da Foz e CCB) ou Dave Douglas & Uri Caine (Caldas Nice Jazz e CCB) estão quase aí a chegar e, depois, há festivais como o Seixal Jazz (de 17 a 26 de outubro, destacando-se Kenny Barron ou Ralph Towner), o Outono em Jazz (na Casa da Música, de 13 de outubro a 4 de novembro, com relevo para Art Ensemble of Chicago) e o Guimarães Jazz (de 7 a 16 de novembro, com as presenças de Charles Lloyd, Vijay Iyer & Craig Taborn ou Joe Lovano). Ao piano, na Gulbenkian: Seong-Jin Cho (13.10), Arcadi Volodos (10.11) e Nikolai Luganksy (02.12).

Falla: El Sombrero de Tres Picos; El Amor Brujo (Harmonia Mundi, 2019)

Como pancadas à boca de cena, “El sombrero de tres picos” abre com o eco de um tacão e um ruflar de castanholas. Não é preciso muito mais para situar a ação. E o que se lhe segue – está, em palco, o moleiro a ensinar as horas a um melro – havia sido descrito por Federico García Lorca meses antes, no seu primeiro livro (“Impresiones y paisajes”, 1918): “As sombras vão-se erguendo e esfumando (…) e escuta-se pelo ar o chirriar de ocarinas e flautas de cana.” Lorca pretendia descrever Granada – tal como Falla, aliás, que emendou o final da sua obra após uma visita à cidade –, e a vaguear pelo bairro de Albaicín, no ponto onde todas as ruas e caminhos se cruzam, o poeta deu numa noite escura com um fantástico cunhal assombrado por medos, pelo latido dos cães e por guitarras dolentes, “o Albaicín trágico da superstição, das bruxas necromantes que deitam as cartas, dos esquisitos rituais ciganos, dos amuletos.” Calma, que não adianta ir à procura no Airbnb – essa Granada do mau-olhado e das almas penadas já não existe. Sabe-lo bem Pablo Heras-Casado [na foto, com Carmen Romeu e Marina Heredia na casa-museu Manuel de Falla], que aí nasceu, e que, este verão, assinalando o centenário da estreia de “El sombrero…”, aproveitou as propriedades únicas do complexo palaciano da Alambra para apresentar este programa.

Na altura, num depoimento divulgado à comunicação social, explicava que se tinha deixado motivar pela vontade de se proximar “da essência, da ideia original, do verdadeiro texto de Falla”, que quis desviar de uma leitura folclórica. Falava do Falla cosmopolita que viveu em Paris, “próximo de Ravel, de Debussy ou, como é óbvio, de Stravinsky”, que conseguiu identificar numa pontiaguda partitura de “mil e uma arestas” (passe o trocadilho) que “surpreende pela sua forma poliédrica, afeta ao cubismo e muito distante de qualquer ideia preconcebida de carácter costumbrista.” Escusado será dizer, é raro encontrar uma interpretação, assim, tão europeísta e agnóstica de “El sombrero…”, tão disposta a resistir à abismal sensualidade que invade os seus acordes ou à vertigem que despertam as suas síncopes. Talvez por isso, em contrapartida, surja, aqui, um “El amor brujo” praticamente em transe, empestado de maldições, com a cantora de flamenco Marina Heredia a trazer à memória o que disse um dia Lorca sobre La Niña de los Peines – que já não era bem uma voz mas, sim, “um jorro de sangue que ganhava dignidade através da dor e sinceridade”. Na época, Falla e Lorca iam em excursões pela serrania andaluza, estranhando-se de si até, por fim, se encontrarem. Nestas viagens de ida e volta, Heras-Casado lembra que, por vezes, é preciso ir até um bocadinho mais longe de casa.

14 de setembro de 2019

Rodrigo Amado/Chris Corsano “No Place to Fall” (Astral Spirits, 2019)

Dá-se por um intumescimento vagamente deontológico sempre que, no jazz, se tem de dar nome a um destes discos. Atente-se ao Olimpo da coisa, isto é, aos duetos de saxofone e bateria de Frank Lowe e Rashied Ali em “Duo Exchange” (Survival, 1973), de John Coltrane e Rashied Ali em “Interstellar Space” (Impulse!, 1974), de Jackie McLean e Michael Carvin em “Antiquity” (Steeplechase, 1975), de Archie Shepp e Max Roach em “Force” (Uniteledis, 1976), de Anthony Braxton e Max Roach em “Birth and Rebirth” (Black Saint, 1978), de Jimmy Lyons e Andrew Cyrille em “Burnt Offering” (Black Saint, 1991), de David Murray e Milford Graves em “Real Deal” (DIW, 1992), de Evan Parker e John Stevens em “Corner to Corner” (Ogun, 1995), de Sabir Mateen e Sunny Murray em “We Are Not at the Opera” (Eremite, 1998) ou aos de Ken Vandermark e Paal Nilssen-Love em “Dual Pleasure” (Smalltown Supersound, 2002) – é num instante que se vai da alcofa ao cosmos, das rezas às regras, do orto ao óbito, e é como se cada par de músicos que se forma tivesse de se sentir subitamente implicado por tudo quanto o rodeia. Nesse contexto, é uma raridade surgir alguém, assim, como Amado e Corsano, capaz de sugerir que – sem o fardo adicional da identificação com o mundo – o simulacro de simetria que há numa relação a dois é já encargo suficiente.

Curiosamente, e embora a sua prática aponte em termos formais para as luminárias do jazz mais expressionista, fazem nascer no espírito tal ideia ao procurarem conforto nas impressões de Townes Van Zandt, figura que andava à cata nas canções do sustento que a vida lhe negava, como um pobre bicho a revolver uma terra estéril com o focinho – “If I had no place to fall/ And I needed to/ Could I count on you/ To lay me down?”, perguntava ele, com o desconsolo de um órfão, em busca, entre esses que o dia-a-dia lhe ia extirpando, de um qualquer bem inextinguível (e todos os temas deste “No Place to Fall” ganharam designação a partir das páginas desse seu imaculado cancioneiro). É quase um lugar-comum lembrar como muito disto é afeto à doxa da improvisação, como o absurdo e o absoluto se tocam na sua órbita, porventura por se atingir o ponto em que nenhuma convenção lhe restringe o ímpeto narrativo. Inspirados por Van Zandt, Amado e Corsano tocam com um abandono fatalista – sem a pose convicta dos seus predecessores, sem denunciar desigualdades, sem tentar adquirir ou administrar qualquer tipo de poder, simplesmente lançando-se no vazio à espera que, lá, bem no escuro, alguém lhes ampare a queda… Até darem por si no Olimpo.