21 de setembro de 2019

Falla: El Sombrero de Tres Picos; El Amor Brujo (Harmonia Mundi, 2019)

Como pancadas à boca de cena, “El sombrero de tres picos” abre com o eco de um tacão e um ruflar de castanholas. Não é preciso muito mais para situar a ação. E o que se lhe segue – está, em palco, o moleiro a ensinar as horas a um melro – havia sido descrito por Federico García Lorca meses antes, no seu primeiro livro (“Impresiones y paisajes”, 1918): “As sombras vão-se erguendo e esfumando (…) e escuta-se pelo ar o chirriar de ocarinas e flautas de cana.” Lorca pretendia descrever Granada – tal como Falla, aliás, que emendou o final da sua obra após uma visita à cidade –, e a vaguear pelo bairro de Albaicín, no ponto onde todas as ruas e caminhos se cruzam, o poeta deu numa noite escura com um fantástico cunhal assombrado por medos, pelo latido dos cães e por guitarras dolentes, “o Albaicín trágico da superstição, das bruxas necromantes que deitam as cartas, dos esquisitos rituais ciganos, dos amuletos.” Calma, que não adianta ir à procura no Airbnb – essa Granada do mau-olhado e das almas penadas já não existe. Sabe-lo bem Pablo Heras-Casado [na foto, com Carmen Romeu e Marina Heredia na casa-museu Manuel de Falla], que aí nasceu, e que, este verão, assinalando o centenário da estreia de “El sombrero…”, aproveitou as propriedades únicas do complexo palaciano da Alambra para apresentar este programa.

Na altura, num depoimento divulgado à comunicação social, explicava que se tinha deixado motivar pela vontade de se proximar “da essência, da ideia original, do verdadeiro texto de Falla”, que quis desviar de uma leitura folclórica. Falava do Falla cosmopolita que viveu em Paris, “próximo de Ravel, de Debussy ou, como é óbvio, de Stravinsky”, que conseguiu identificar numa pontiaguda partitura de “mil e uma arestas” (passe o trocadilho) que “surpreende pela sua forma poliédrica, afeta ao cubismo e muito distante de qualquer ideia preconcebida de carácter costumbrista.” Escusado será dizer, é raro encontrar uma interpretação, assim, tão europeísta e agnóstica de “El sombrero…”, tão disposta a resistir à abismal sensualidade que invade os seus acordes ou à vertigem que despertam as suas síncopes. Talvez por isso, em contrapartida, surja, aqui, um “El amor brujo” praticamente em transe, empestado de maldições, com a cantora de flamenco Marina Heredia a trazer à memória o que disse um dia Lorca sobre La Niña de los Peines – que já não era bem uma voz mas, sim, “um jorro de sangue que ganhava dignidade através da dor e sinceridade”. Na época, Falla e Lorca iam em excursões pela serrania andaluza, estranhando-se de si até, por fim, se encontrarem. Nestas viagens de ida e volta, Heras-Casado lembra que, por vezes, é preciso ir até um bocadinho mais longe de casa.

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