26 de outubro de 2019

Saariaho: Graal Théâtre; Circle Map; Neiges; Vers Toi Qui Es Si Loin (BIS, 2019)

Por mais espectral que se afigure, ou, quiçá, por isso mesmo, há na música de Saariaho uma inebriante sede de presenças – um teatro de sombras, em busca pela unidade existencial, sim, mas marcado pelo signo da incompletude. E escutar a sua obra, em termos algo simplistas, é permanecer adstrito a essa fenda que se abre no espaço e no tempo. Como é óbvio (em “Circle Map”), não admira que se socorra da poesia desse decantador de ausências que é Rumi: “Não sou feito de terra, água, ar ou fogo// Não sou do paraíso, ou deste mundo// O meu lugar é sempre o não-lugar”, escreveu o persa em “As Obras de Xamece de Tabriz”, 700 e tal anos antes do António Variações de ‘Estou Além’. Aqui, de modo muito apropriado, o místico é ouvido mas jamais visto – na voz de Arshia Cont, em off, os seus versos lidos, gravados e reproduzidos, como se a orquestra passasse a estar assombrada pelo fantasma do seu próprio solista. Quem se recordar dos registos fonográficos de Raudive (dos mortos, dizia ele), sabe que isto é de levantar os cabelos: e quando Cont, com o som da recitação manipulado, a fim de imitar a fala de uma criança, declama “Sou tão pequeno que mal posso ser visto”, estamos já, de facto, no território do biopsicólogo Jaak Panksepp, que associou os “arrepios musicais”, como lhes chamava, a um sistema sinalizador biológico primitivo (ex.: entre os primatas, quando mãe e cria estão perto um do outro mas por algum motivo perdem o contato visual, o grito da mãe faz eriçar o pêlo da cria).

De carência e afeto trata igualmente “Vers toi qui es si loin”, dedicada a Peter Herresthal e baseada na derradeira ária de “L’Amour de loin” (a ópera que a finlandesa compôs há coisa de 20 anos, com libreto de Amin Maalouf), cheia de ressonâncias de Rumi, claro, mas, e apesar de Los Panchos o terem cantado melhor, em ‘Piel Canela’, capaz de lembrar uma oração islâmica, que diz: “Onde quer que eu vá – somente Tu/ Onde quer que eu pare – somente Tu”. Virada a oriente está também a Arturiana “Graal théâtre”, um concerto para violino alimentado a lascas da escala arábica, espécie de épico em que os heróis de Wagner surgem incorpóreos, desmaterializados e de átomos dispersos. Exatamente o que se passa em “Neiges”, que obriga, com calafrios, a voltar a Rumi: “Seja a neve derretendo/ Lave-se de si.”

“Alefa Madagascar! Salegy, Soukous & Soul From The Red Island, 1974-1984” (Strut, 2019)

Em África, só em Madagáscar, realmente, para que uma zebra, um leão, uma girafa e um hipopótamo, como no filme, fossem tidos por seres do outro mundo – e o inverso é verdadeiro; afinal, os lémures foram batizados com o termo em latim para “fantasmas” (na Roma Antiga, organizava-se anualmente a Lemúria para esconjurar espectros malfazejos). Isto, claro, para dizer que, tal como esses distintos primatas, também a música da ilha se descreve por aproximação: “O waka waka (a noroeste) e o tsapika (a sudoeste) são primos direitos do benga queniano e do mbaqanga sul-africano”, sugeria há cerca de 20 anos Ian Anderson, da recém-defunta “fRoots”, como se a estrutura genética de tudo quanto se ouve na ilha, face à dos seus congéneres continentais, não lembrasse, antes, o que Escher fez às escadarias. Atente-se ao catálogo da Discomad, por exemplo (do qual provém a esmagadora maioria dos temas desta antologia): ao longo da década de setenta, a editora lançou no mercado malgaxe nomes como Johnny Hallyday, Françoise Hardy, Aphrodite’s Child, Elton John, Rolling Stones, Suzi Quatro, Boney M., ou, até, Linda de Suza – mas nada disto, no entanto, e mal comparando, efetivamente explica a absoluta singularidade da fauna local (é uma palavra perigosa, essa, a da singularidade, remetendo para equívocos, como o que levou os guitarristas norte-americanos Henry Kaiser e David Lindley a designar como “A World Out of Time” as suas gravações in situ).

Na verdade, muito do que se escuta em “Alefa Madagascar!” (que se deve traduzir por “Avante Madagáscar!”) provém de uma desgraçada Segunda República (1975-1992) que, não obstante, teve o condão de tentar exorcizar tudo aquilo que se diria peculiar a um só indivíduo e não aos outros e que servia muitas vezes para justificar o injustificável: como a exclusão. Também aí, e então, gente como Jean Kely et Basth [na foto], Soymanga, Charles Maurin Poty, Feon’Ala, Falafa, ou Mahaleo, situada na periferia do cânone ocidental mas dele se socorrendo, veio a terreiro lembrar que o bê-á-bá dos Direitos Humanos podia ser transferido para o seu domínio: não era por ser diferente da dos demais que a sua música teria obrigatoriamente de ser tratada de forma diversa.

19 de outubro de 2019

John Coltrane “Blue World” (Impulse!, 2019)


No verão de 2018, pelo telefone, a propósito de “Both Directions at Once”, Ravi Coltrane fazia de Richard Attenborough, em “Parque Jurássico”, exclamando: “Quem comparar o que aqui está com aquilo que o meu pai vinha de fazer em quarteto, e principalmente com o que viria a fazer de seguida, encontra a peça que faltava no seu puzzle.” Nos dias que correm, resgatar ao olvido um “álbum perdido” de John Coltrane passa mesmo por engenharia genética – e o sucesso da operação foi de tal ordem, aliás, que a Impulse insiste em manipular-lhe o ácido desoxirribonucleico. Desta feita, graças à descoberta de uma sessão de estúdio inédita, de 24 de junho de 1964, em que Coltrane, McCoy Tyner, Jimmy Garrison e Elvin Jones – ali, entre “Crescent” e “A Love Supreme” – gravaram de modo muito deliberado, não haja dúvida, um punhado de temas para “Le Chat dans le sac”, do cineasta canadiano Gilles Groulx. Contrariamente a “Both Directions at Once”, hélas, não possui inéditos, mas, sim – e, ao que tudo indica, por sugestão do próprio Groulx –, novas versões de ‘Naima’ (estreada em “Giant Steps”, em 1960), de ‘Village Blues’ (com origem em “Coltrane Jazz”, de 1961), de ‘Like Sonny’ (idem), de ‘Traneing In’ (com procedência no LP “John Coltrane with the Red Garland Trio”, de 1958) e uma reformulação de ‘Out of This World’, de Harold Arlen e Johnny Mercer (tema de abertura do álbum “Coltrane”, de 1962), fraudulentamente rebatizada como ‘Blue World’. Temperamentais, excêntricas, mas ao mesmo tempo tão humanamente vitais e transigentes, surgem no filme excertos de quase todas, e só as desconhecia por completo quem nunca leu “Jazz in the Movies”, de David Meeker (Talisman, 1977), ou quem nunca viu o filme (disponível há anos no sítio do National Film Board of Canada).

Groulx sabia bem o que queria. E tão importante quanto aquilo que nos diz sobre o quarteto de Coltrane, em pleno processo histórico de articulação intercultural, é o que nos revela “Le Chat dans le sac” acerca de um certo cinema – no caso, e em oposição ao estigma que marcou a década, um cinéma direct, como se dizia no Québec, que se baseava mais na observação concreta da realidade em curso do que em crises imaginárias chegadas de outro mundo qualquer (o único momento verdadeiramente utópico no filme dá-se quando Claude olha para a câmara e confessa que se tornou colaborador de um jornal para expressar o que lhe “vai no âmago” e “chegar às pessoas”, abençoado seja). Está, por isso, tomado por aquele impulso algo narcísico que, para citar meia dúzia de obras-primas, havia levado Cassavetes a Charles Mingus (“Sombras”, 1958), Godard a Martial Solal (“O Acossado”, 1959), Naruse a Toshiro Mayuzumi (“Quando uma Mulher Sobe as Escadas”, 1960), Antonioni a Giorgio Gaslini (“A Noite”, 1961), Polanski a Krzysztof Komeda (“A Faca na Água”, 1962) ou, porque não, Lopes a Manuel Jorge Veloso (“Belarmino”, 1964): o de delegar no jazz uma noção de intimidade que um mundo em desintegração total torna interdita e troca por nada. Quanto a isso, Groulx não podia ser mais sincero: o filme inicia-se com Claude e Barbara a terminarem a sua relação ao som de ‘Naima’, tema que Coltrane havia dedicado a uma mulher e que, agora, gravava quando vivia com outra, e que neste contexto acaba por libertar o casal de si mesmo, sugerindo, como afirmou Pessoa, que a vida não basta. Porquê “Blue World”, então? Porque, apesar de tudo, e como na época cantava Vinicius, é “bom viver no azul”. Talvez Coltrane encontrasse conforto na ideia.

Prokofiev: Piano Sonatas Nos. 4, 7, 9 (Harmonia Mundi, 2019)

Nessa crónica do exílio a que chamou “O Cabo das Tormentas”, Nina Berbérova põe uma das personagens a pensar “naquilo que era realmente o seu destino, porque nem tudo o que acontecia na sua vida fazia parte do seu destino.” Ninguém achará extraordinária tamanha racionalização, mas menos ainda os russos, como ela, ou como Prokofiev, que ela bem conhecia, que chegou a dizer que na sua errância pelo mundo levava sempre o peso da pátria às costas. No caso do compositor, pese o paradoxo, nunca mais do que quando regressou definitivamente a Moscovo, em 1936. Aí, então, e basta ler os seus diários, cola-se a si a frase completa de Berbérova: “Sentia sempre a aproximação do destino: tudo [nele] ficava de sobreaviso, como [que] a preparar-se para receber o golpe – horrível, esmagador, todo-poderoso – da felicidade ou da desgraça. Sentia de repente a necessidade, não de conhecer, não de adivinhar, não de raciocinar, mas apenas de se submeter àquilo que nesses instantes se elevava em si [mesmo] como uma música.”

Melhor descrição para estas sublimes sonatas, não há, apesar da mais antiga delas, o Op. 29, proceder de 1917, não tinha ainda Prokofiev pesadelos com Estaline. Não obstante, bordada que está pelo complexo de emoções que de Prokofiev se apoderou quando soube do suicídio de Max Schmidthof, um colega e amigo, trata do mesmo que as outras: de reagir à terrível combinação de circunstâncias que influem de um modo inelutável na sorte de cada um. Arriscaria dizer que nunca, como aqui, na interpretação de Melnikov, estiveram os seus mais contrastantes elementos tão dramaticamente plasmados, o episódio pianissimo tranquillo e dolce, em especial, tão pungentemente marcado. Na sétima sonata, Op. 83, essa função recai sobre o seu segundo andamento, quando, de Schumann, se evoca “Wehmut”, canção em que o Eu lírico se vê invadido por um sofrimento que tem de permanecer invisível aos outros. E assim ficou, para sempre – demonstra-o a derradeira sonata, Op. 103, tão despida e no entanto jamais a nu, coberta pelo que Nabokov identificou em Prokofiev: “Sob a máscara do otimismo, um sentimento de profunda insegurança.”

12 de outubro de 2019

Agenda: Outono em Jazz, SeixalJazz, Jazz ao Centro


Na penúltima “Artforum” de 1969, em entrevista, Joseph Beuys dizia que ser professor era a sua maior obra de arte: “O restante é um produto residual, uma mera demonstração. Se te queres expressar, tens de apresentar algo tangível. Mas, depois, até isso se reduz à função de documento histórico. E os objetos já não têm grande importância”, dizia. Pois, inadvertidamente podia estar a descrever a relação do Art Ensemble of Chicago com a indústria fonográfica. Aliás, em maio desse mesmo ano, antes de partir para Paris, a trupe organizou um concerto de despedida na sua cidade natal que teve como ponto alto um momento impossível de reproduzir em estúdio: conta Paul Steinbeck, em “Message to Our Folks”, que, entre uma marcha algo paródica, com direito a fanfarra e a prosódia solene, Joseph Jarman circulou entre o público, distribuindo bandeirinhas dos EUA e gritando “A América está nas vossas mãos!”. Como é óbvio, nesse mesmo instante, ninguém pensaria que, 50 anos depois, e após o falecimento de Jarman, de Lester Bowie e Malachi Favors, o Art Ensemble of Chicago ainda se poria a atravessar o Atlântico e a levantar ondas. Mas, eis que ele aí está, terça, na Casa da Música, com dois sobreviventes dessa era (Roscoe Mitchell e Don Moye - na foto) à frente de uma formação onde se incluem Hugh Ragin e Tomeka Reid e que possui tanto de retrospetivo como de prospetivo – para o confirmar, basta escutar o recente “We Are on the Edge: A 50th Anniversary Celebration” (Pi). Moye, numa conversa com a “Modern Drummer”, em 1981, sintetizou deste modo o que faziam em palco: “Nas mais antigas tradições musicais e artísticas negras, uma atuação como a nossa não se poderia resumir exclusivamente à música. Teria de se dirigir à totalidade das coisas. Por isso, encaramo-la sobretudo como uma experiência holística.”

Não se vislumbra atitude mais atual, claro, numa altura em que, dentro do possível, se presta especial atenção a um dos peculiares paradoxos em que o jazz sempre assentou: o de ter conquistado uma aura mítica à custa da expressão ao vivo dos seus agentes ao mesmo tempo que ia procedendo à construção do cânone a cada nova sessão de gravação. Demonstra-o a vertiginosa série de concertos que se avizinha, em que se parece disputar a frase com que o célebre “The Jazz Book”, de Joachim Berendt, abria: “O jazz foi sempre do interesse de uma minoria de pessoas – sempre.” Atente-se ao Outono em Jazz: além do AEC, vão ao Porto figuras como Kevin Hays e Lionel Loueke (amanhã), Rabih Abou-Khalil e Joachim Kühn (domingo, 27) ou o quarteto de Rodrigo Amado com Joe McPhee, Kent Kessler e Chris Corsano (quarta, 30) – a mesma formação, já agora, que toca a 27 em Coimbra (num Jazz ao Centro que inclui também Steve Coleman, a 19, ou Fred Frith, a 25) e a 31 na Culturgest. Por sua vez, com o impecável trio de Kenny Barron, arranca na quinta o SeixalJazz, em que se destacam ainda o quarteto de Peter Bernstein (sábado, 19), Ralph Towner (quarta, 23) e a Monk’estra, de John Beasley (sábado, 26). É obra.