26 de outubro de 2019

“Alefa Madagascar! Salegy, Soukous & Soul From The Red Island, 1974-1984” (Strut, 2019)

Em África, só em Madagáscar, realmente, para que uma zebra, um leão, uma girafa e um hipopótamo, como no filme, fossem tidos por seres do outro mundo – e o inverso é verdadeiro; afinal, os lémures foram batizados com o termo em latim para “fantasmas” (na Roma Antiga, organizava-se anualmente a Lemúria para esconjurar espectros malfazejos). Isto, claro, para dizer que, tal como esses distintos primatas, também a música da ilha se descreve por aproximação: “O waka waka (a noroeste) e o tsapika (a sudoeste) são primos direitos do benga queniano e do mbaqanga sul-africano”, sugeria há cerca de 20 anos Ian Anderson, da recém-defunta “fRoots”, como se a estrutura genética de tudo quanto se ouve na ilha, face à dos seus congéneres continentais, não lembrasse, antes, o que Escher fez às escadarias. Atente-se ao catálogo da Discomad, por exemplo (do qual provém a esmagadora maioria dos temas desta antologia): ao longo da década de setenta, a editora lançou no mercado malgaxe nomes como Johnny Hallyday, Françoise Hardy, Aphrodite’s Child, Elton John, Rolling Stones, Suzi Quatro, Boney M., ou, até, Linda de Suza – mas nada disto, no entanto, e mal comparando, efetivamente explica a absoluta singularidade da fauna local (é uma palavra perigosa, essa, a da singularidade, remetendo para equívocos, como o que levou os guitarristas norte-americanos Henry Kaiser e David Lindley a designar como “A World Out of Time” as suas gravações in situ).

Na verdade, muito do que se escuta em “Alefa Madagascar!” (que se deve traduzir por “Avante Madagáscar!”) provém de uma desgraçada Segunda República (1975-1992) que, não obstante, teve o condão de tentar exorcizar tudo aquilo que se diria peculiar a um só indivíduo e não aos outros e que servia muitas vezes para justificar o injustificável: como a exclusão. Também aí, e então, gente como Jean Kely et Basth [na foto], Soymanga, Charles Maurin Poty, Feon’Ala, Falafa, ou Mahaleo, situada na periferia do cânone ocidental mas dele se socorrendo, veio a terreiro lembrar que o bê-á-bá dos Direitos Humanos podia ser transferido para o seu domínio: não era por ser diferente da dos demais que a sua música teria obrigatoriamente de ser tratada de forma diversa.

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