12 de outubro de 2019

Rautavaara: Vigilia (BIS, 2019)

Há coisa de dez anos, com a edição portuguesa de “O Resto é Ruído” no prelo, conversava com o conceituado crítico Alex Ross acerca dessa sua não menos cotada narrativa através da qual, dizia, se tinha posto “à escuta do século XX”. A certa altura, falávamos dos muitos nomes que por um motivo ou outro acabou por omitir, como o de Rautavaara. “Pois é”, admitia Ross. “Por vezes, ao escrevermos um livro destes, somos as primeiras vítimas dos caprichos da nossa própria argumentação. E era impossível citar toda a gente sem parecer que estava a fazer um inventário. Mas, sem me querer esquivar à questão, acho que é importante sublinhar que isto é só um ponto de partida. E, por amor de deus, já que fala em Rautavaara, não me faça sentir responsável por alguém nunca chegar a conhecer ‘Vigilia’!” Respondo-lhe que o ponto era esse: que, quando se dedicava a elencar os factos que comprovam que não há um só cânone na música erudita do século passado ou que muitas das suas peças mais distintas tiveram, até, de remar contra a maré cultural do seu tempo, sim, teria preferido que ele falasse em “Vigilia” em vez de ter referido os Radiohead. Tal é o poder desta singularíssima obra-prima coral do finlandês, que só podia ter origem no seio da Igreja Ortodoxa do seu país mas que se diria ao mesmo tempo dispensar qualquer domicílio fixo, que se baseia na vida e morte de João Batista mas que se confunde com um ato de imaginação, que pugna pela expressão predicativa mas que na voz humana articula mais depressa aspectos emotivos que designativos, que põe o texto a emancipar-se da música tanto quanto admite o princípio de que o canto é anterior à poesia – ou seja, que se toma por contemporânea daquela época imemorial em que o canto era o único tipo musical com uma ocorrência comum na espécie, mas que, em simultâneo, adquire uma significação interpretativa à luz do que, no momento exato da sua conceção, Schnittke preconizava em “Tendências Poliestilísticas na Música Moderna”: algo “capaz de unir passado, presente e futuro, o lugar e o mundo”.

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