Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
26 de março de 2021
Marcos Resende & Índex "Marcos Resende & Índex" (Far Out, 2021)
Pois é: “Portugal! Ainda e sempre, Portugal!” Foi o
que o pianista brasileiro Marcos Resende me respondeu há uns quatro anos,
quando lhe perguntava como era regressar ao país em que tinha recebido as
maiores vaias da sua vida. “Nessa altura, no início de 70, esse negócio nem
mexia muito comigo, sabe? Parecia consequência do estatuto marginal do jazz.
Mas, quando voltei com o Índex [no 8º Cascais Jazz, em 1978], aí, até da
imprensa levei porrada!” A acreditar nos jornais, produzia uma música “não pouco barulhenta, eletrificada
de não poder mais – mas pouco original. […] Cópia [nada] feliz de Herbie
Hancock”, como, então, no semanário “Se7e”, escrevia António Macedo. Caso fosse
preciso, era a prova de que algumas das problemáticas por Marcos colocadas
permaneciam por superar: no I Encontro da Canção Portuguesa, em março de 1974, antes de,
com ar professoral, Vitorino, Jorge Letria, Fausto, Zeca, Freire ou Adriano
subirem ao palco do Coliseu, nem “se chegou a ouvir, dada a força dos assobios” (in “DN”). “É isso”, prosseguia, entre risos. “A minha revolução não era
propriamente aquela prescrita pelos senhores doutores!” Ao tornar
ao Brasil, e depois de, por cá, ter constituído os Bossa Jazz 3, os Contacto ou
os Status, de ter tocado em festivais (Porto e Vilar de Mouros, em 1971;
Cascais, em 1971 e 1972; etc.) e clubes
de jazz ou, aos sábados, no “Pop 25”, da RTP 1, ter entrado pelos lares
portugueses adentro, Marcos era subitamente confrontado com a ideia de que
preconizar o exercício da liberdade na música não tinha sido sinónimo de
aceitação pelos opositores da ditadura. “Sem mágoa! Até porque foi a
oportunidade de formar o Índex, para o qual logo compus um tema chamado ‘Praça
da Alegria’ em homenagem aos meus amigos e ao meu tempo passado no Hot Clube,
que muito me orgulha”, dizia-me. Integrante deste inédito de 1976, ‘Praça da
Alegria’ ficou até hoje por ouvir, Marcos morreu há quatro meses, de um cancro,
e, nas artes, Portugal continuou a preferir contestar,do que celebrar os
grandes que em si iam despontando. Sorte do Brasil, que logo teve quem
ombreasse com Donald Byrd, Roy Ayers ou Lonnie Liston Smith. Até sempre!
19 de março de 2021
Shintaro Quintet “Evolution” (BBE, re. 2021)
Certamente ambiciosa, a peregrinação de Shintaro
Nakamura à Meca do jazz não foi um desafio sem precedentes – quando lá chegou, em
1982, já ilustríssimos conterrâneos seus (Teruo Nakamura, Isao Suzuki e Yoshio
Suzuki, por sinal, também eles contrabaixistas) haviam dado sete voltas à Caaba
entoando cânticos de adoração, antes de a beijar. Teruo não se tinha ficado por
aí: em “Big Apple”, envolvendo a nata dos músicos locais, deu-lhe uma valente trinca!
Dir-se-ia gente particularmente atenta às tabelas de vendas, tendo em conta a
sua produção: isto é, ao que faziam Crusaders, Spyro Gyra, Earl Klugh, Pat
Metheny, Grover Washington Jr., Bob James, David Sanborn e Lee Ritenour. Mas, por
sorte, ou intervenção divina, o disco que mais sucesso fez no período era o que
dos restantes mais se distinguia – e a nenhum outro, quanto ao primeiro álbum
de Wynton Marsalis, este “Evolution” tanto se assemelha. Com pequeninas diferenças:
parafraseando Bill Shoemaker, a propósito de Marsalis, em “Jazz in the 1970s”, para
Shintaro, a tradição não era o Código Penal; swing, um mantra de conformismo; clássico, sinónimo de
historicista. Observe-se, aliás, este pormenor: o disco de Shintaro intitula-se
“Evolution”; o de Marsalis, como afirmou Francis Davis, crítico do “The Village
Voice”, só por acaso não se chamou “Recapitulatin’ with the Miles Davis Quintet”.
Claro que, como Marsalis, se pudesse, também Shintaro gostaria de ter a seu
lado Herbie Hancock, Tony Williams e Ron Carter – ao invés, tinha Jeff Jenkins,
Bob Kenmotsu e um par de expatriados, Fukushi Tainaka e Shunzo Ohno. Mas,
contrariamente a Marsalis, não os empregaria para ilustrar o que no campo da
biologia evolutiva se apelidava de Lei da Recapitulação (i.e., a desacreditada
teoria que o desenvolvimento do embrião repete o desenvolvimento evolucionário
da espécie à qual pertence passando por etapas que se assemelham aos seus
ancestrais na fase adulta.) Só que a História é uma pescadinha de rabo na boca:
quando Shintaro deixou Nova Iorque e tornou ao Japão, em 1984, “Evolution”
vendeu 1000 unidades; “Wynton Marsalis” ia nas 100.000 – ah, se pudesse ter
sido ao contrário!
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12 de março de 2021
Nahawa Doumbia “Kanawa” (Awesome Tapes From Africa, 2021)
Dir-se-ia ter ficado com o destino traçado em 1981,
quando alguém caracterizou as suas primeiras gravações como um produto de “La
Grande Cantatrice Malienne” e a Radio France Internationale lhe atribuiu o
prémio “Découverte”. Mas Nahawa Doumbia, que de certa forma nasceu sob o signo
da maldição, sabia o que queria desde menina, quando cantar se revelava o único
meio ao seu alcance para se ancorar num mundo para lá da fome, da culpa e do medo.
Desde então, órfã que é, e ao longo de uma boa dúzia de álbuns, sempre que o
assunto é o dever filial fica com a voz embargada, como se tivesse um remendo
na alma e as emoções amputadas, os laços familiares feitos de corda gasta. Em
finais de 90, pelo telefone, o produtor Frédéric Galliano descreveu-ma como uma
força da natureza e ainda me lembro da sua metáfora: “Tem um tom tão radiante
que é como se tivesse colocado coroas de ouro nos dentes todos! Mas a Nahawa
não é uma jelimusolu. Aliás, em
estúdio, nas sessões do Electronic Sextet, sempre que o assunto vinha à baila
ela sorria e dizia que não com a cabeça, repetindo: ‘Kono. Sou uma simples kono’.
Então, perguntei ao marido, o guitarrista N’Gou Bagayoko, o que queria com
aquilo dizer: ‘Ave canora.’ Percebes? Canta porque quer!” Discutíamos um novo
projeto editorial, a Frikyiwa, e Galliano estava fascinado pelos jeli e pelas jelimusolu, ou griôs, como lhes chamava: “Ainda há sítios no Mali
em que vivem completamente à margem da comunidade”, dizia-me ele. A frase trazia
à memória os primeiros escritos europeus sobre as tradições uolofe e mandinga,
de gente como André Álvares d’Almada ou Francisco de Lemos Coelho (nomeadamente
o “Tratado breve dos rios de Guiné do
Cabo-Verde, desde o rio de Sanagá até aos
baixos de Sant'Anna; de todas as nações de Negros q(ue) ha na ditta costa, e de
seus Costumes, armas, trajes, juramentos, guerras” e a “Descrição da costa da
Guiné desde o Cabo Verde athe Serra Lioa com todas as Ilhas e Rios que os
Brancos Navegam”, ali em finais do século XVI e meados do
século XVII) que se referia a uma casta tão marginalizada – a musical – que só
poderia ser efetivamente descrita com o apodo “judeu”. Daí a importância daquele
kono, que mais não era que um
eufemismo para independência, a recusa da servitude. Agora, todo ele virado
para o futuro, animado por uma euforia inconcebível, alimentado por uma trupe
de “tocadores de tambores, rabecas e cavacos”, como contavam os exploradores
portugueses, “Kanawa” é o seu epítome doutrinal. Aos 60 anos, analfabeta,
Nahawa folheia as páginas de um livro por escrever de que conhece cada linha,
cada parágrafo, e cujo essencial se consegue discernir, mesmo se as palavras nos
parecem fora de ordem. Diz: esperança.
5 de março de 2021
Gesualdo: Madrigali A Cinque Voci (Harmonia Mundi, 2021)
A declaração de intenções fê-la Agnew há um ano, quando
apresentou os “Libri Primo & Secondo” desta integral: “Mesmo as derradeiras
e musicalmente mais ousadas obras de Gesualdo resultam de uma evolução lógica e
intelectualmente defensável rumo a um cromatismo que não se prova tão
revolucionário quanto o que seria à primeira vista de supor, nem propriamente sem
precedentes ou antecedentes, como se tem igualmente o hábito de sugerir.”
Resumindo: o escocês não acredita que numa análise forense estas partituras
exibam quaisquer traços de sangue. Dessa forma, então, o momento em que Dom
Carlo Gesualdo assassinou a mulher e o amante, em 1590, não seria já uma espécie
de ponto de Arquimedes na sua biografia, responsável por atos, decisões e
acontecimentos subsequentes. Não, na origem desta nova teatralidade no seu
discurso polifónico estaria a sua mudança para a cidade de Ferrara, em 1594,
quando do céu, ou dos corredores do poder, surgiu a oportunidade de se unir por
casamento com Leonor d’Este – terá sido a exposição à música do Ducado que o levou
a dramatizar os códigos expressivos do género madrigalesco. É possível. E nem
será preciso sacar da prateleira “Music in Renaissance Ferrara, 1400-1505”, de
Lewis Lockwood. Já depois disso, e até Gesualdo lá chegar, o feudo foi um
laboratório sujeito às extravagâncias de Desprez, Obrecht, Brumel, Willaert,
Rore, Wert, Marenzio, Agostini e Luzzaschi – Monteverdi apelidou-o de Academia
dos Intrépidos. No entanto, ninguém, como Gesualdo, privilegiou tanto assim temáticas
melancólicas, mórbidas, a roçar o macabro, nem, através de vertiginosos
intervalos, prendeu deste modo o lastro da culpa a um cortejo de misera vita, dolorosa morte, tormento,
lagrime i sospiri, martiri, cruda sorte, sospira e more
– fórmulas que atuavam como um vírus que começava por atacar o ouvido interno,
transformando cantores em equilibristas, desestabilizando a coesão de grupo. Mas
nem isso abala a firmeza retórica desta abordagem aos “Libri Terzo & Quarto”,
compostos e publicados antes de a Casa d’Este perder Ferrara e, mais a sul, no
Castelo de Gesualdo, Dom Carlo perder a cabeça.
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