12 de março de 2021

Nahawa Doumbia “Kanawa” (Awesome Tapes From Africa, 2021)

Dir-se-ia ter ficado com o destino traçado em 1981, quando alguém caracterizou as suas primeiras gravações como um produto de “La Grande Cantatrice Malienne” e a Radio France Internationale lhe atribuiu o prémio “Découverte”. Mas Nahawa Doumbia, que de certa forma nasceu sob o signo da maldição, sabia o que queria desde menina, quando cantar se revelava o único meio ao seu alcance para se ancorar num mundo para lá da fome, da culpa e do medo. Desde então, órfã que é, e ao longo de uma boa dúzia de álbuns, sempre que o assunto é o dever filial fica com a voz embargada, como se tivesse um remendo na alma e as emoções amputadas, os laços familiares feitos de corda gasta. Em finais de 90, pelo telefone, o produtor Frédéric Galliano descreveu-ma como uma força da natureza e ainda me lembro da sua metáfora: “Tem um tom tão radiante que é como se tivesse colocado coroas de ouro nos dentes todos! Mas a Nahawa não é uma jelimusolu. Aliás, em estúdio, nas sessões do Electronic Sextet, sempre que o assunto vinha à baila ela sorria e dizia que não com a cabeça, repetindo: ‘Kono. Sou uma simples kono’. Então, perguntei ao marido, o guitarrista N’Gou Bagayoko, o que queria com aquilo dizer: ‘Ave canora.’ Percebes? Canta porque quer!” Discutíamos um novo projeto editorial, a Frikyiwa, e Galliano estava fascinado pelos jeli e pelas jelimusolu, ou griôs, como lhes chamava: “Ainda há sítios no Mali em que vivem completamente à margem da comunidade”, dizia-me ele. A frase trazia à memória os primeiros escritos europeus sobre as tradições uolofe e mandinga, de gente como André Álvares d’Almada ou Francisco de Lemos Coelho (nomeadamente o “Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo-Verde, desde o rio de Sanagá até aos baixos de Sant'Anna; de todas as nações de Negros q(ue) ha na ditta costa, e de seus Costumes, armas, trajes, juramentos, guerras” e a “Descrição da costa da Guiné desde o Cabo Verde athe Serra Lioa com todas as Ilhas e Rios que os Brancos Navegam”, ali em finais do século XVI e meados do século XVII) que se referia a uma casta tão marginalizada – a musical – que só poderia ser efetivamente descrita com o apodo “judeu”. Daí a importância daquele kono, que mais não era que um eufemismo para independência, a recusa da servitude. Agora, todo ele virado para o futuro, animado por uma euforia inconcebível, alimentado por uma trupe de “tocadores de tambores, rabecas e cavacos”, como contavam os exploradores portugueses, “Kanawa” é o seu epítome doutrinal. Aos 60 anos, analfabeta, Nahawa folheia as páginas de um livro por escrever de que conhece cada linha, cada parágrafo, e cujo essencial se consegue discernir, mesmo se as palavras nos parecem fora de ordem. Diz: esperança.

Sem comentários:

Enviar um comentário