Dir-se-ia ter ficado com o destino traçado em 1981,
quando alguém caracterizou as suas primeiras gravações como um produto de “La
Grande Cantatrice Malienne” e a Radio France Internationale lhe atribuiu o
prémio “Découverte”. Mas Nahawa Doumbia, que de certa forma nasceu sob o signo
da maldição, sabia o que queria desde menina, quando cantar se revelava o único
meio ao seu alcance para se ancorar num mundo para lá da fome, da culpa e do medo.
Desde então, órfã que é, e ao longo de uma boa dúzia de álbuns, sempre que o
assunto é o dever filial fica com a voz embargada, como se tivesse um remendo
na alma e as emoções amputadas, os laços familiares feitos de corda gasta. Em
finais de 90, pelo telefone, o produtor Frédéric Galliano descreveu-ma como uma
força da natureza e ainda me lembro da sua metáfora: “Tem um tom tão radiante
que é como se tivesse colocado coroas de ouro nos dentes todos! Mas a Nahawa
não é uma jelimusolu. Aliás, em
estúdio, nas sessões do Electronic Sextet, sempre que o assunto vinha à baila
ela sorria e dizia que não com a cabeça, repetindo: ‘Kono. Sou uma simples kono’.
Então, perguntei ao marido, o guitarrista N’Gou Bagayoko, o que queria com
aquilo dizer: ‘Ave canora.’ Percebes? Canta porque quer!” Discutíamos um novo
projeto editorial, a Frikyiwa, e Galliano estava fascinado pelos jeli e pelas jelimusolu, ou griôs, como lhes chamava: “Ainda há sítios no Mali
em que vivem completamente à margem da comunidade”, dizia-me ele. A frase trazia
à memória os primeiros escritos europeus sobre as tradições uolofe e mandinga,
de gente como André Álvares d’Almada ou Francisco de Lemos Coelho (nomeadamente
o “Tratado breve dos rios de Guiné do
Cabo-Verde, desde o rio de Sanagá até aos
baixos de Sant'Anna; de todas as nações de Negros q(ue) ha na ditta costa, e de
seus Costumes, armas, trajes, juramentos, guerras” e a “Descrição da costa da
Guiné desde o Cabo Verde athe Serra Lioa com todas as Ilhas e Rios que os
Brancos Navegam”, ali em finais do século XVI e meados do
século XVII) que se referia a uma casta tão marginalizada – a musical – que só
poderia ser efetivamente descrita com o apodo “judeu”. Daí a importância daquele
kono, que mais não era que um
eufemismo para independência, a recusa da servitude. Agora, todo ele virado
para o futuro, animado por uma euforia inconcebível, alimentado por uma trupe
de “tocadores de tambores, rabecas e cavacos”, como contavam os exploradores
portugueses, “Kanawa” é o seu epítome doutrinal. Aos 60 anos, analfabeta,
Nahawa folheia as páginas de um livro por escrever de que conhece cada linha,
cada parágrafo, e cujo essencial se consegue discernir, mesmo se as palavras nos
parecem fora de ordem. Diz: esperança.
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