A declaração de intenções fê-la Agnew há um ano, quando
apresentou os “Libri Primo & Secondo” desta integral: “Mesmo as derradeiras
e musicalmente mais ousadas obras de Gesualdo resultam de uma evolução lógica e
intelectualmente defensável rumo a um cromatismo que não se prova tão
revolucionário quanto o que seria à primeira vista de supor, nem propriamente sem
precedentes ou antecedentes, como se tem igualmente o hábito de sugerir.”
Resumindo: o escocês não acredita que numa análise forense estas partituras
exibam quaisquer traços de sangue. Dessa forma, então, o momento em que Dom
Carlo Gesualdo assassinou a mulher e o amante, em 1590, não seria já uma espécie
de ponto de Arquimedes na sua biografia, responsável por atos, decisões e
acontecimentos subsequentes. Não, na origem desta nova teatralidade no seu
discurso polifónico estaria a sua mudança para a cidade de Ferrara, em 1594,
quando do céu, ou dos corredores do poder, surgiu a oportunidade de se unir por
casamento com Leonor d’Este – terá sido a exposição à música do Ducado que o levou
a dramatizar os códigos expressivos do género madrigalesco. É possível. E nem
será preciso sacar da prateleira “Music in Renaissance Ferrara, 1400-1505”, de
Lewis Lockwood. Já depois disso, e até Gesualdo lá chegar, o feudo foi um
laboratório sujeito às extravagâncias de Desprez, Obrecht, Brumel, Willaert,
Rore, Wert, Marenzio, Agostini e Luzzaschi – Monteverdi apelidou-o de Academia
dos Intrépidos. No entanto, ninguém, como Gesualdo, privilegiou tanto assim temáticas
melancólicas, mórbidas, a roçar o macabro, nem, através de vertiginosos
intervalos, prendeu deste modo o lastro da culpa a um cortejo de misera vita, dolorosa morte, tormento,
lagrime i sospiri, martiri, cruda sorte, sospira e more
– fórmulas que atuavam como um vírus que começava por atacar o ouvido interno,
transformando cantores em equilibristas, desestabilizando a coesão de grupo. Mas
nem isso abala a firmeza retórica desta abordagem aos “Libri Terzo & Quarto”,
compostos e publicados antes de a Casa d’Este perder Ferrara e, mais a sul, no
Castelo de Gesualdo, Dom Carlo perder a cabeça.
Sem comentários:
Enviar um comentário