Canta Amina Alaoui e liquefazem-se azulejos em Alfama; enquanto isso, explorando o bairro sob lua incerta, o violino de Kheireddine M’Kachiche derrama tinta em mapas invisíveis e entontece-lhe nas vielas o sangue; sobretudo, as notas que se soltam do alaúde tunisino de Sofiane Negra – como grãos libertos das ampulhetas em que se guardou o pó dos califados – estremecem-lhe muralhas. É assim “Gharnati”, e tanto melhor. Pois quem reclama hoje a herança do Al-Andalus declarará – entre outras coisas – um património poético fundamental para a renovação responsável do fado. Por cá já se provou vezes sem conta que a missão não interessa a ninguém. Alaoui evoca com mais frequência tradições que vão de Granada a Tremecém ou de Córdova a Fez, mas compreendê-lo-á ao ponto de no seus concertos começar a incluir a canção de Lisboa. Ouvi-la, em “Siwan”, cantar ‘Ondas do Mar de Vigo’, de Martim Codax, funciona nessa perspectiva como uma extática antevisão. No disco – maioritariamente, poemas dos séculos XI e XII musicados por Jon Balke – esse é, aliás, dos poucos momentos livres de um absurdo musicológico que lhe tolhe movimentos (juntar versos do alentejaníssimo Al-Mu’tamid Ibn Abbad ao trompete distópico de Jon Hassell, nem aqui nem na China).
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
30 de janeiro de 2010
23 de janeiro de 2010
Le Trio Joubran “À L’ombre Des Mots”
Nos poemas de Mahmoud Darwish tudo tem uma causa: as pedras polidas em forma de face, os cedros vertidos pelas colinas, as janelas suspensas sobre o Mediterrâneo, o apelo do marulho na noite, o aroma do pão rompendo na madrugada, os mártires e minaretes que sustêm o peso do céu, o tempo contado em nuvens que passam imitando no ar o voo das andorinhas e no chão ensombrando prisões, a mentira sincera do amor, a esperança de uma miragem e a marcha de um profeta… Até o acaso tem causa. Vem do clarão com que nasce a palavra mas precede-lhe porque se chama Palestina, a sua terra sem terra, geografia de exílio, saudade e memória, para a qual, nas fileiras da OLP, escreveu a Declaração de Independência. Falecido a 9 de Agosto de 2008, deixou mais próxima do pó uma certa ideia de pátria. Por isso, e para que a língua conduza à ressurreição, organizou o trio de alaúdes dos irmãos Samir, Wissam e Adnan Joubran este concerto em torno da voz daquele que há mais de uma década acompanhavam em leituras. Com Youssef Hbiesch na percussão, igualam modulações e métrica, espelham palavras com ostinatos e colam harpejos a sílabas numa virtuosa homofonia em câmara ardente vulnerável apenas à vontade do vento e à infelicidade do Homem.
16 de janeiro de 2010
Tom Zé, Autor da Bossa Nova
Em 1939, numa sibilante e gutural grafonola que calava o ziziar de provençais cigarras, Jorge Luis Borges, em Nimes, vaporizava lamentos portenhos num borriço de alma. O tango, com Buenos Aires à distância, era uma experiência sinóptica. De um trago, escreveu “Pierre Menard, Autor de Quixote”, conto mascarado de recensão literária consagrado a um ficcional autor francês. Explicava Borges que Menard não copiou a novela do século XVII – criou, isso sim, condições para que no século XX nascesse como que pela primeira vez o texto. O rico e subtil palimpsesto – de páginas em tudo coincidentes com certos capítulos do “Dom Quixote” de Cervantes – teria agora, centenas de anos depois, de ser lido à luz do seu tempo. Reflectia o argentino sobre autoria e interpretação e postulava que o contexto e acto da leitura podem alterar o significado a qualquer obra. Mas, astuto e previdente, apresentou na mesma altura “A Biblioteca de Babel”, narrativa através da qual, inversamente, patenteava o absurdo de um universo em que se multiplicavam livros até ao infinito, sem sentido possível, em todas as variações, traduções e permutações: a algaraviada da repetição. Hoje, numa era – de sampling, karaoke e mash-ups em epidémica difusão mediática – saturada por referências estéticas em constante reprodução, e em que a realidade há muito ultrapassou antiquadas ficções, parece simultaneamente ingénuo e trivial tentar desvendá-la num processo que lhe espelhe os mecanismos. Ou seria, não fosse o mundo andar esquecido e, claro, se não existisse Tom Zé, que fez do plágio programa.
Em 2008, assinalando os 50 anos da bossa nova, Tom, apoiado em Arnaldo Antunes e desmultiplicando duplas com cantoras (Fernanda Takai, Mariana Aydar, Mônica Salmaso, Tita Lima, Andréia Dias, Márcia Castro ou, entre outras, Badi Assad), produziu, com “Estudando a Bossa – Nordeste Plaza”, um gesto revisionista que não encontrou tão lúcida equivalência entre as restantes acções celebrativas. Como Menard, que contradisse a ideia primária de que todas as épocas são iguais ou distintas, Tom esclareceu em disco que João Gilberto não podia ser de todos ou só de um. E, também ele, cumpriu os requisitos para que, na sua produção, se amansassem patos, mareassem barquinhos, amachucassem bolinhas de papel, replicassem Rosa e Doralice, pingassem bim e bom, enfim, se duplicasse o texto inaugural de João. Para isso, desafinou-se, viniciou-se, copacabanou-se e, com jobiniana insensatez, acorcovadou-se num barracão nas traseiras do tonalismo. Daí resultou uma deslumbrante metonímia, com acordes, toada, harmonia, palavras, despencados contraponto e síncopes, que, pela primeira vez, mostravam João como sempre foi: suspiro do samba, pai do que – numa música de tambores – a teoria musical apelida de “terminação feminina”, mas ainda, como Tom, vítima do ostracismo e filho do exílio – alguém que, insuficiente mas incapaz de aceitar que se silenciasse o seu canto, voltou em 1957 a um Rio de Janeiro que lhe tinha sido indiferente para, então, criar algo tão singular que só a genética tendência para a duplicação conseguiu transformar em género. Por isso aproveite quem, em Viseu e Guimarães, possa assistir ao que originaram décadas de conspiração: Tom Zé a fazer de João Gilberto a fazer de Tom Zé.
9 de janeiro de 2010
Syran Mbenza & Ensemble Rumba Kongo "Immortal Franco: Africa’s Unrivalled Guitar Legend"
Com a sua morte, em 1989, caiu a noite sobre uma nação em ruínas. E – à excepção da que, estando já em parte alguma, se baseava em valores de produção importados – não se vislumbrava que a música no Congo sobrevivesse ao desaparecimento de Franco. Passadas duas décadas está ainda por se refazer o país, mas pela primeira vez desde a saída do poder de Mobutu chega em paz o mês de Janeiro. Talvez por isso tenha 2009 (com o segundo volume de “Francophonic”, a compilação “Cubanismo from the Congo” ou a descoberta de Staff Benda Bilili) prenunciado o regresso da antiga colónia belga ao mapa mundial de distinção estética. Também Syran Mbenza – com um punhado de veteranos das TPOK Jazz, Quatre Étoiles e Kékélé a seu lado – relembra as lições do seu malogrado líder, puxando o lustro a clássicos do seu repertório e renovando-lhe características essenciais: irresignável sentido rítmico em síncopes de voluptuosa elegância, transparente delicadeza em harmonias de eterna deriva atlântica, gorjeados vapores extraídos a febris braços de guitarra, deslizantes melodias suspensas em colares de atóis, sopros de panteão a balançar as ancas ao equador, prosódicos jogos de palavras a escarnecer linguistas. Tão simples quanto a rotação da Terra.
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